Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Aos vinte minutos, já o Beira-Rio estava a perder por três a zero. Zeca
Sucateiro, empoleirado na vedação, gritava para o Armandinho Alfaiate, que
jogava a ponta esquerda: és um entrevado. Ao que o outro respondia: entrevada
era a tua avó. Diga-se de passagem que naquele tempo ainda um jogador podia
saltar para fora do campo e ir às fuças à assistência. Era uma cena que se
repetia: Zeca Sucateiro atezanava Armandinho e este, quando menos se esperava,
ferrava-lhe dois tentos no focinho. Foi o que aconteceu ao findar a primeira
parte, continuava o Beira-Rio a levar três. Meu pai, além de campeão de
atletismo, tinha sido jogador de futebol da Académica e possuía o diploma de
treinador. Quando as coisas estavam a correr mal, o que era quase sempre,
pediam-lhe ao intervalo para ele ir às cabinas tentar virar o resultado. Ele
chegara a treinar o Beira-Rio, mas tinha-se chateado por causa de Zamora, o
guarda-redes, (meu pai dizia keeper), assim chamado por imitar o outro, o
grande Zamora da selecção de Espanha. Zamora, ou seja o Firmino, tinha
qualidades. Era o que o meu pai dizia. O pior era o feitio. Sempre que Manuel
Tinoco ia para trás da baliza, a coisa dava para o torto. Não que não gostasse
de Zamora, mas tinha mau perder. Já com a selecção era a mesma coisa. Ao menos
levassem as cores da Monarquia, dizia o Manuel Tinoco, que era republicano,
fumava charuto e nunca tirava o chapéu à diplomata, nem mesmo para dormir,
diziam as más línguas de Alma. Quando a selecção levava nove da Espanha, era
assim que ele desabafava: ao menos vestissem a camisola da monarquia, a da
República não. E o mesmo acontecia sempre que, no seu entender, Zamora dava um
frango. O que, diga-se em abono da verdade, frequentemente acontecia. Então,
Manuel Tinoco começava a roer o charuto e dizia-lhe por detrás da baliza: ao
menos tira a camisola, não sujes as cores da tua terra. Zamora, isto é, o
Firmino, ouvia uma, duas, três vezes. Mas às tantas não se aguentava: despia a
camisola e desatava a correr pelo campo fora. Meu pai, que juntamente com seu
irmão Tiago, tinha sido campeão nacional de estafeta de quatro por cem,
levantava-se do banco e sprintava até o agarrar. Às vezes tinha de lhe pregar
um par de estalos. E Zamora lá voltava para as redes do Beira-Rio.
Mas
um dia, em que Manuel Tinoco tinha sido especialmente cáustico, ao ponto de lhe
dizer: vai vestir a camisola do Beira-Mar, que era a pior coisa que se podia
dizer a um beirariense, o Firmino não esteve com meias aquelas: saiu da baliza,
amachucou o chapéu de Manuel Tinoco, o que por muitos foi tomado quase como um
sacrilégio, despiu-se todo e saiu do campo em pelo. Aí o meu pai chateou-se: não
corro atrás de um gajo nu. E nunca mais treinou o Beira-Rio. Mas lá ia às
cabinas sempre que lhe pediam e as coisas, como era costume, estavam a correr
para o torto. Não sei o que lhes disse naquele dia, mas aos dez minutos da
segunda parte, já o Beira-Rio tinha reduzido para dois a três. Lembro-me
perfeitamente do segundo golo: Armandinho foi marcar um corner, meu pai deu
umas instruções e Almiro veio de trás e marcou. Foi de tal modo que Manuel
Tinoco se virou para o meu pai e disse-lhe: amigo Lourenço, este golo é seu. Estava
o jogo em ponto de rebuçado, quando apareceu Gonçalo Pena, republicano de
sangue azul, vagamente primo do meu pai e ainda um pouco mais alto do que ele.
Tinha um grande nariz curvo e o lábio inferior um pouco caído. Como o dos
Braganças, dizia o meu pai. Vinha a pedido da minha avó. Está toda a gente à
tua espera, disse ele. É uma vergonha se não vais. Mas o Beira-Rio, que era uma
equipa desgraçada, estava a jogar como há muito não se via: bola recebida, bola
passada, ao primeiro toque, ataques pelos flancos, cruzamentos à linha, à
inglesa, como o meu pai gostava. O que ele não conseguia suportar era quando o
avançado centro tinha a bola e o ponta lhe pedia: cruza. Grande burro, dizia o
meu pai, não se cruza do centro para a ponta, mas da ponta para o centro.
Gonçalo
Pena não me largava. Era uma figura singular e não por acaso o haviam escolhido
para mensageiro. Ele tinha sido um dos homens de confiança do meu avô Geraldo
Pais e suspeitava-se que fora a paixão de minha tia Elvira, irmã de minha mãe,
que morreu muito nova, tuberculosa. Dele se contavam histórias extraordinárias.
Companheiro de carteira do meu pai no liceu de Aveiro, estava ele um dia a
carregar cartuchos na aula de Francês, quando o professor, a quem chamavam o Comme
Ici, de repente lhe disparou: diga lá, ó Gonçalo, este lápis azul não é
amarelo mas preto. Contava o meu pai que ele se levantou e, muito sério,
começou a argumentar que não podia ser, era um contra-senso, recusava-se a
dizer, ainda por cima em francês, que era a língua de Descartes, uma frase sem
lógica, completamente despida de sentido. O lápis ou é azul ou não é, se é azul
não é amarelo e muito menos pode ser preto. Está bem, retorquiu o Comme Ici, eu
não quero filosofia, o que eu quero é a frasezinha em francês». In
Manuel Alegre, Alma, Publicações dom Quixote, 1995, ISBN 978-972-202-668-0.
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