segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Anel. Jorge Molist. «Quis vê-lo melhor e tirei-o, colocando-o sob o candeeiro da mesinha de cabeceira. Foi então que aconteceu e fiquei boquiaberta de surpresa. A luz, ao incidir na pedra, encastrada de tal forma que o metal só a sustentava pelos lados»

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«A torre, ferida pelo fogo, derribou a sua massa colossal sobre os infelizes lá em baixo, com um ruído ensurdecedor. A multidão fugia. Uma nuvem de pó e cinza, qual vento do deserto carregado de areia, avançava penetrando pelas ruas, cobrindo tudo com uma capa esbranquiçada. Virei-me na cama. Meu Deus, que angústia! Voltava outra vez a recordação daquela manhã aziaga em que as mais altas torres caíram... Já passou, disse para mim própria, isso já foi há meses; estou na minha cama. Calma, calma. Depois da minha festa de aniversário, Mike tinha ficado a dormir comigo e eu sentia o seu agradável calor junto de mim; respirando pausadamente, satisfeito, relaxado. Acariciei o seu dorso, largo, forte. E, abraçando-o, sosseguei. Os nossos corpos descansavam nus sob os lençóis; apesar da intensidade da paixão, ele tivera forças suficientes para me dizer que continuava a amar-me, depois de me amar; e foi capaz de soltar os galanteios, antes de cair a dormir como uma pedra. E eu também, rendida por um dia tão intenso, fiquei presa por um sonho doce, creio, até que chegaram essas imagens de angústia. Olhei para o despertador. Eram quatro e meia da madrugada de domingo; tinha muito tempo para dormir. Já tranquila, fechei os olhos, mas deparei de novo com a trágica visão do desmoronamento, dos escombros, do pânico das pessoas. O sonho tinha mudado. Já não se passava em Nova Iorque. Não era o desmoronamento das Torres Gémeas. Era qualquer coisa diferente e as imagens e sons chegavam até mim sem que eu pudesse evitá-lo. A multidão gritava. O derrube das torres tinha aberto uma brecha e os homens, empunhando espadas, lanças e balestras, protegidos com capacetes de ferro, cotas de malha e escudos, precipitavam-se, por entre a poeira, para a estreita passagem da muralha, incitando-se uns aos outros. Fundiram-se na bruma suja, no estrondo, e jamais regressaram. Ao fim de pouco tempo, a neblina vomitou uma horda de guerreiros uivantes. Eram muçulmanos e brandiam alfanjes ensanguentados. Ainda com a espada no cinturão, eu era incapaz de lutar; reparava que a minhas forças se esvaíam juntamente com o sangue das minhas feridas abertas. Não podia brandir armas, nem sequer levantar um braço, e apressei-me a procurar protecção. Olhei para a minha mão e ali, no meu sonho, com o seu vermelho profundo, estava o anel de rubi.
Mulheres, crianças e velhos, acarretando fardos, alguns com cavalos, outros com cabras e ovelhas, corriam em direcção ao mar. As crianças choravam aterrorizadas e as lágrimas deslizavam, formando canais nos seus pequenos rostos sujos de pó. Os mais crescidos seguiam as suas mães, e estas levavam pela mão, ou nos braços, os mais pequenos. Com a carga dos assaltantes, esfaqueando os fugitivos, instalou-se o pânico. A multidão gritava, abandonava os seus pertences, alguns deixavam os seus filhos, só queriam escapar. Sem saber para onde. Era terrível, senti muita pena deles, mas não podia socorrê-los. Que seria feito das crianças sem mãe? Talvez salvassem a vida como escravos. Grandes portões de madeira, reforçados com metal, iam-se fechando. Atrás deles, havia protecção, mas a tropa, de espada desembainhada, mantinha a multidão ao largo; só franqueava a entrada a alguns. Os que se amontoavam do lado de fora começaram a implorar em voz alta. Havia empurrões, prantos, súplicas, insultos. Os guardas gritavam para que se separassem, que partissem, que saíssem para o porto. E quando a multidão amontoada quis forçar a passagem, os da entrada começaram a golpear os mais próximos. Pobres infelizes! Como gritavam a sua dor e o seu medo! Abriu-se uma clareira e vi o acesso quase fechado. Sangrava muito e tive medo de morrer ali, entre os gentios desesperados. Cambaleando, lancei-me para as espadas dos soldados. Tinha de passar aquela porta! Levantei-me na cama de um salto. Respirava ofegante e tinha os olhos cheios de lágrimas. Que angústia! Ainda maior do que aquela que senti aquando do atentado às Torres Gémeas. O sonho era para mim ainda mais real do que o sucedido no 11 de Setembro. Não espero que possam entender isso; eu própria, ainda hoje, não o entendo totalmente. Mas uma imagem final ficou-me gravada na mente. O homem que comandava os sicários da porta vestia de branco e no seu peito brilhava a mesma cruz que estava pintada na parede da fortaleza. Aquela cruz..., fazia-me lembrar qualquer coisa. Voltei-me para Mike à procura de amparo. Estava agora de boca para cima e continuava a dormir feliz, com um rosto angelical e meio sorriso na face. De certeza que os seus sonhos e os meus eram muito diferentes. Eu não podia partilhar a sua paz; aquele anel, não o dele, mas o outro, deixava-me inquieta. Disse antes que estava nua. Não totalmente. Na minha mão, cintilavam os dois anéis. Não estava habituada a dormir com jóias, mas depois de me habituar, não tirei o anel de diamante puro, símbolo do nosso amor, da minha promessa, da minha nova vida. Ainda não sei por que motivo também estava deitada na cama com o outro anel. Esse, o do meu pesadelo. Esse anel obcecava-me assim tanto a ponto de me aparecer nesse sonho trágico?
Quis vê-lo melhor e tirei-o, colocando-o sob o candeeiro da mesinha de cabeceira. Foi então que aconteceu e fiquei boquiaberta de surpresa. A luz, ao incidir na pedra, encastrada de tal forma que o metal só a sustentava pelos lados, projectava uma cruz vermelha nos lençóis brancos. Era lindo, mas inquietante, era uma cruz muito singular; tinha os quatro braços iguais, mas abriam-se nas suas extremidades formando dois pequenos arcos, dilatando-se no final. Naquele momento, apercebi-me: era a mesma cruz do sonho! A do uniforme dos soldados que carregavam contra a multidão, a que estava pintada na parede da fortaleza. Fechei os olhos e respirei fundo. Não podia ser. Estaria ainda a sonhar? Quis acalmar-me e, apagando a luz, procurei refúgio junto de Mike, que, a dormir, tinha-se voltado de costas. Abracei-o. Isso tranquilizou-me um pouco, mas os meus pensamentos continuavam a toda a velocidade. Tudo o que dizia respeito àquele anel era misterioso: a forma como tinha chegado até mim, a sua aparição no meu sonho, a visão dessa cruz antes de a descobrir também no anel... Disse para mim que aquela jóia tinha uma história para contar, não era uma prenda qualquer, escondia alguma coisa...» In Jorge Molist, O Anel, Ésquilo, Lisboa, 2004, ISBN 972-860-543-9.

Cortesia de Ésquilo/JDACT