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e wikipedia
«Lady
Chatterley está tão viva na imaginação popular quanto lady Godiva nua, atravessando
Coventry montada em seu cavalo e coberta apenas pela cortina dos cabelos. Mas
lady Godiva foi uma heroína da pureza e da integridade, causando na maioria das
pessoas vergonha de sequer lhe dar uma espiada, enquanto lady Chatterley sempre
pode ser motivo de chacota ou de alguma piada suja: lady Chatterley e suas
proezas sexuais. Graças a Lawrence, basta a qualquer comediante mencionar um
guarda-caça para provocar risadas; e quanta ironia, porque Lawrence pregava o
sexo como uma espécie de sacramento e, mais ainda, um sacramento capaz de nos
salvar dos efeitos da guerra e dos males de nossa civilização. Denegrir o sexo,
anatematizou ele, é o crime do nosso tempo, porque precisamos é de ternura pelo
corpo, pelo sexo, precisamos… com ternura. Era assim que ele falava, mas o que
terá acontecido? Ele virou representante da obscenidade e do riso abafado, pelo
menos no nível popular. Muitos romances não ganham nada quando relacionados a
seu tempo. Entre tantos, O grande Meaulnes é eterno, e quem quer
conhecer a biografia de seu autor? E o mesmo acontece com O jardim secreto.
Precisamos conhecer a história pessoal de Dickens para apreciar suas obras? Já
outros romances, geralmente do tipo mais polémico, só podem ser compreendidos
no contexto, e O amante de lady Chatterley é um deles. Lê-lo sem nenhuma
outra informação, especialmente na forma febril da terceira versão, só pode
levar o leitor a se perguntar do que estará falando toda essa pregação tão
enfática, especialmente nos dias de hoje, quando é tão difícil sequer lembrar
de quanto era hipócrita a sociedade em que Lawrence escrevia. Era puritana,
reprimida e dissimulada, e, como sempre ocorre em tempos assim, o riso sujo
nunca estava muito distante. As três versões de O amante de lady Chatterley foram
escritas nos quatro anos anteriores à morte do autor. Foi sua maneira de
reescrever completamente o texto, não se limitando a uma revisão mas chegando a
uma visão renovada. Tendia a dar mais valor à vivacidade do novo que à
reelaboração do texto. Podemos achar que a terceira versão não seja a melhor, e
é o que muita gente pensa; no entanto, é a versão apresentada aqui, e a que
Lawrence decidiu apresentar por último. É a mais emocional, insistente,
urgente: talvez tenha sido a intensidade deste romance que valeu a Lawrence sua
reputação de escritor obcecado por sexo. E, então, quais eram as
circunstâncias? Primeiro, o autor estava morrendo de tuberculose, mas vivia,
como dizemos hoje, em estado de negação, embora a doença tivesse sido
devidamente diagnosticada e parte da mente de Lawrence soubesse da verdade. Ele
sempre sofrera de fraqueza do peito: naqueles dias, a expressão era quase
sempre um eufemismo para tuberculose. Ainda jovem tivera pneumonias,
bronquites, gripes e tosses de todo tipo. Parece ter sido contaminado pela
grande epidemia de gripe de 1918-9. Ainda assim, recusava-se a admitir a
tuberculose e falava de suas bronquites, de suas gripes, de suas tosses, dizia
que contraíra um resfriado, tudo, menos tuberculose. O que era estranho num
homem que valorizava tanto a verdade, defendendo a clareza de expressão e
pensamento, particularmente em questões físicas. Antes ainda de O amante de
lady Chatterley, Lawrence já tinha adquirido a reputação de cruzado do
sexo. Seus romances e contos eram banidos, confiscados, causavam escândalo. Às
vezes os comentários às suas obras tinham mais um tom de lástima que de
irritação; tamanho talento, mas aliado a tamanha crueza: este era muitas vezes
o tom que a crítica literária usava para se referir a ele e à sua obra. Mulheres
apaixonadas deixara as pessoas especialmente chocadas. Lawrence sempre
exibia uma disposição belicosa, pronto à defesa e ao ataque, sendo defendido
pelos outros. Tinha o temperamento que acompanha a tuberculose: hipersensível,
excitável. Esses doentes são muito irritáveis, dados a explosões de mau humor.
Sabem que seu tempo é curto. Cada arquejo, cada tosse os faz lembrar de sua
morte. A tosse incessante de Lawrence em seus últimos anos de vida lhe valeu a
expulsão de alguns hotéis, obrigando-o a escolher com cuidado os lugares onde
se hospedava. Na juventude Lawrence se orgulhava de seu corpo, apesar da fraqueza
do peito. O que transparece em seus primeiros romances, especialmente em The
white peacock [O pavão branco], é o retrato de um jovem perfeitamente à vontade
no campo, com amigos, atento a cada pássaro, animal, insecto e planta. Ele podia
ter dito, como John Clare, amo as coisas naturais quase à loucura. Com John
Clare, o jovem Lawrence estava na companhia certa. Este jovem orgulhoso do
corpo mas acometido de fraqueza do peito se tornou o homem cujo corpo em
decomposição o enchia de sofrimento e desprezo por si mesmo. Eram essas as
muitas emoções tumultuadas e exasperantes que actuavam nesse homem muito doente
quando ele escreveu e reescreveu O amante de lady Chatterley. Sua mulher
Frieda vinha mantendo um caso amoroso com um italiano lascivo, e Lawrence sabia
de tudo. Frieda nunca fora uma mulher muito dada ao tacto, portanto não fazia
esforço para esconder seus encontros clandestinos. E não poupava em nada os
sentimentos do marido. Dizem que ela contou a amigos que Lawrence estava impotente
desde 1926. A tuberculose tem dois efeitos violentos e contraditórios: acentua
a sexualidade e suas fantasias febris, mas provoca impotência. A vida sexual
desses dois sempre foi ruidosa e tumultuada; o que jamais constituiu segredo.
Os amigos, visitantes e acólitos enamorados que Lawrence atraía eram informados
dos vários estágios de seu amor e de sua vida sexual, em prosa e verso,
Lawrence tratava de tudo, do que pensava, do que fazia, o tempo todo, em cartas
para amigos de toda parte, e em suas conversas. Frieda se queixava da
sexualidade dele em conversas com as irmãs, com os ex-amantes, com amigos. Ele
não a satisfazia, na verdade era mais homossexual que a média. Frieda era uma
mulher que tivera e teria muitos amantes; não era nem um pouco ignorante sobre
o sexo e se comportava com absoluta desinibição: levou Lawrence para a cama
poucos minutos depois que se conheceram. A despeito de todo o pragmatismo e de
toda a experiência da mulher, Lawrence cultivava ideias não muito distantes de
uma verdadeira mística. Sempre acreditou que a única coisa que servia no amor
físico era o orgasmo recíproco. Gozamos juntos desta vez, ou palavras
semelhantes, figuram em mais de um de seus contos. Algumas de suas fantasias,
da forma como aparecem em O amante de lady Chatterley, eram as de um
rapaz romântico. A época era de tamanha ignorância sexual que hoje é difícil
lembrar ou compreender. Lawrence desconhecia o clitóris, que via como um bico.
Um bico que arranhava e rasgava, como nas put… velhas. Para ele, o clitóris era
uma arma, usada contra o homem. E esse nível de ignorância era comum. O
clitóris só era mencionado sem ênfase nos manuais de sexo, isso quando era
mencionado. Lembro que, durante a guerra, um jovem aviador me contou que uma
certa moça, amiga comum, tinha uma coisa que parecia um pé de coelho lá em baixo,
bem peluda, com que eu adoro brincar, do que ela gosta muito também,
confidenciou-me. De maneira que não era preciso conhecer bem a coisa para lhe
extrair algum prazer. Quanto a mim, fiquei sabendo do clitóris através de
Balzac, não de sua existência ou de seus usos, mas que fazia parte do léxico do
amor, com um certo destaque. Lawrence sabia de tudo sobre o ponto G, embora
jamais deva ter ouvido o termo e provavelmente achasse abominável a ideia de
sair à sua procura ou lhe dar um nome. O orgasmo vaginal no que tem de melhor,
da maneira como é descrito por ele, certamente informado por uma de suas
amantes, é tão fidedigno quanto a ignorância do que ele diz sobre o clitóris.
Mas aqui nos encontramos em meio a um verdadeiro campo de batalha emocional:
Lawrence gozava depressa demais, diz Frieda, e, por outro lado, queixa-se
Lawrence, ela precisava sistematicamente provocar seu próprio orgasmo com a
ajuda do incómodo clitóris. Mas, visto que as ocorrências sexuais serviam de
marcos do progresso em sua guerra polémica permanente, o que os dois diziam em
seus momentos de queixa não devia ser mais que a metade dos factos. Quando
Lawrence descobriu o sexo anal, as coisas começaram a andar bem, pelo menos
para ele, embora o apelido que usasse para a mulher fosse saco de mer… Se as
cenas de sexo de O amante de lady Chatterley falam sempre de uma mescla
de ilusão e maravilha, as conversas no rancho de Taos, as brigas, os fuxicos
eram francamente repulsivos. Enquanto Lawrence conquistava e chocava o mundo
com seus romances e contos, os visitantes do rancho quase sempre se viam
decepcionados e mesmo tomados de repulsa pelo casal, devido à violência e,
ocasionalmente, à grosseria declarada da situação». In D. H. Lawrence, O Amante de
lady Chatterley, Introdução de Doris Lessing, Penguin, 1999, 2006, Editora
Schwarcz, Companhia das Letras, 2006, ISBN 978-856-339-767-6.
Cortesia
de Penguin/CdasLetras/JDACT