quarta-feira, 29 de junho de 2016

O Cego de Sevilha. Robert Wilson. «Teve uma sensação que beirava a satisfação, ao passar pelas portadas vermelhas da Puerta del Príncipe, na fachada da Plaza de Toros de La Maestranza, prestes a receber as primeiras touradas da semana que antecedia a Feria de Abril»

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«(…) Um ponto de luz, pequeno como uma estrela, perfurou a grande cúpula. Cresceu em círculo e tirou-o do seu poço negro. Não, quero ficar. Deixem-me aqui nas trevas da masmorra. Mas se sentia inexoravelmente arrastado, atirado para dentro do círculo em expansão, até ressurgir na sala, onde continuava James Cagney, e agora uma moça, que não representava a única diferença que havia a registar. Tinha um fio eléctrico lhe vincando o rosto. Tinha sido apertado com força por debaixo do nariz e atava-o ao espaldar alto da cadeira, de tal modo que sentia os contornos esculpidos de uma espécie de antigo brasão lhe penetrando no couro cabeludo. Mas havia mais. Valha-me Maria, Mãe de Cristo, Virgen de la Macarena, de la... De la Esperanza... O que me fizeram? Sentia lágrimas quentes nas bochechas, correndo pelos lados do rosto até aos cantos da boca. Caíam-lhe pesadamente na camisa branca. Deixavam um sabor de metal adocicado entre os dentes. O que me fizeram. A tela da televisão rolou na direcção dele e se deteve junto dos seus joelhos. Estavam acontecendo demasiadas coisas ao mesmo tempo. Cagney beijava a moça, provocadoramente. A corda se enfiava em seu septo. O pânico crescia dos pés, se espalhando violentamente pelo corpo, reunindo mais pânico pelo caminho, se afunilando à entrada dos órgãos, se dirigindo veloz para a aorta em compressão. Irreprimível. Imbatível. Impensável. Tinha o cérebro lívido, os olhos ardendo, as lágrimas irrompendo sem cessar. As pálpebras, rastilhos queimando na escuridão, avançavam sobre as pupilas negras e brilhantes, ferindo o branco dos olhos. Surgiu um conta-gotas na sua visão incendiada, com uma trémula gota de orvalho suspensa no tubo de vidro. Os olhos iam absorvê-la. E pedir mais. Agora vai ver tudo, disse a voz. E eu forneço as lágrimas. A gota caiu no olho. A fita começou a rodar e gemeu. James Cagney e a moça foram consumidos por uma crescente tempestade. Depois veio a gritaria e a administração meticulosa de lágrimas.
Tudo começou no momento em que entrou naquela sala e viu aquele rosto. Tinha recebido a ligação às 8:15, precisamente quando se preparava para sair de casa: um cadáver, uma suspeita de crime e um endereço. Semana Santa. Fazia sentido que houvesse pelo menos um assassínio na Semana Santa; não que tivesse algum efeito sobre as multidões que acompanhavam a deslocação diária de Virgens Santas, tremendo nos seus andores, convergindo para a catedral. Tirou cuidadosamente o carro do casarão que pertencera ao pai, na calle Bailén. Os pneus trepidaram nos paralelepípedos das ruas estreitas e vazias. A zona antiga, relutante em acordar em qualquer época do ano, estava especialmente silenciosa àquela hora durante a Semana Santa. Entrou no largo fronteiro ao Museo de Bellas Artes. As casas caiadas, emolduradas a ocre, estavam silenciosas por detrás das palmeiras altaneiras, duas colossais árvores da borracha e grandes jacarandás que ainda não tinham florido. Abriu a janela à manhã, ainda fresca devido ao orvalho da noite anterior, e rumou ao Guadalquivir e à alameda que forma o Paseo de Cristóbal Cólon. Teve uma sensação que beirava a satisfação, ao passar pelas portadas vermelhas da Puerta del Príncipe, na fachada da Plaza de Toros de La Maestranza, prestes a receber as primeiras touradas da semana que antecedia a Feria de Abril. Isto era o mais próximo que conseguia da felicidade, nos dias que corriam, e ainda durava quando virou à direita, depois da Torre del Oro, e atravessou o rio, que estava enevoado sob os primeiros raios de sol, se afastando da parte velha da cidade. Na Plaza de Cuba, se desviou do caminho habitual de ida para o trabalho, e desceu a calle de Asunción. O novo juez de guardia, um muito jovem juiz de escala, estivera à sua espera no imaculado patamar de entrada, em mármore branco, do grande e dispendioso apartamento de Raúl Jiménez, no sexto andar do Edificio del Presidente. E tinha tentado avisá-lo.
Lembrava-se disso. Prepare-se, inspector-chefe, dissera. Para o quê? Perguntou Falcón. Durante o embaraçoso silêncio que se seguiu, o inspector-chefe Javier Falcón tinha escrutinado minuciosamente o aspecto do terno do juez de guardia, que decidiu ser italiano ou de um estilista espanhol; Adolfo Dominguez, talvez. Caro, para um jovem juiz como Esteban Calderón, de trinta e seis anos e apenas um de serviço. A aparente falta de interesse de Falcón decidiu Calderón, que não quis ser tomado por ingénuo pelo inspector-chefe do Grupo de Homicídios de Sevilla, de quarenta e cinco anos, mais de vinte dos quais passados vendo gente assassinada em Barcelona, Saragoça, Madrid e agora Sevilha. Já vai ver, disse, com um encolher de ombros nervoso. Então posso avançar? Perguntou Falcón, observando os procedimentos regulamentares com um juiz com quem nunca antes trabalhara. Calderón anuiu e disse que a Policía Científica tinha acabado de entrar no edifício e que ele podia fazer as suas observações iniciais da cena do crime. Falcón atravessou o corredor que ligava a entrada ao escritório de Raúl Jiménez, pensando em se preparar, mas sem saber como. Parou à porta da sala de estar e franziu o sobrolho. Estava vazia. Voltou-se para Calderón, que estava nesse momento de costas para ele, ditando qualquer coisa à secretária del juez, enquanto o médico forense escutava. Falcón espreitou para dentro da sala de jantar, igualmente vazia. Estavam de mudança? Perguntou. Claro, inspector-chefe, disse Calderón. A única mobília ainda no apartamento é uma cama no quarto das crianças e o escritório completo do Sr. Jiménez. Isso quer dizer que a Sra. Jiménez já se encontra na casa nova com as crianças? Não temos certeza. O meu adjunto, o inspector Ramírez, deve estar chegando. Mandem-no imediatamente vir ter comigo». In Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT