quinta-feira, 30 de junho de 2016

A Ruiva e Outras Histórias. Fialho de Almeida. «Às vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam. Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara»

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(…) Uma tarde, passeando na grande rua que corre ao longo da fachada do cemitério, tinha parado a contemplar, no alto de um pedestal glorioso, a estátua do conde das Antas. E falava, ainda, nos seus últimos dias, daquela enérgica figura de soldado, grande barba sobre o peito e cabeça de um vigor leonino, a mão apertando o punho da espada... e, desde então, a sua ânsia pedia-lhe militares, que arrastam nas ruas os sabres prateados e destacam, na agitação dos enterros, dentre os graves toilettes negros com a alegria embriagadora dos seus vivos rutilantes e das suas divisas sanguíneas, cor dos desejos insaciáveis. Nos seus devaneios passavam pálidas figuras de alferes, dos que tilintam esporas no lajedo dos passeios e retorcem bigodes frisados, contemplando as janelas, em domingos de procissão. Todos os dias visitava a casa das observações: ali, sobre bancas, expunham-se caixões abertos; ela mesma metia nas mãos dos mortos as argolas de alarme, e tal emprego quotidiano permitia-lhe ver gentes de todas as castas e profissões. Meninas ricas, filhas de milionários e nascidas entre veludos, áureas meninices em berços de renda, acalentadas por amas normandas de cachos louros, iam ali dormindo nos seus caixões de cetim, vítimas de tísica galopante, olhos vítreos e face cavada, lábios brancos em listras lívidas e o gelado sorriso dos mártires, clareando em reflexos os rostos, de uma rigidez de escultura. Rapazes pobres, dos que ao clarão das forjas crestaram a vida, figuras secas de famintos, torciam nos rostos expressões de sofrer infernal e gelavam-se na nudez miseranda da morte, ao lado de reverendos, com a barba bem feita, a batina nova e grave, quebrada em pregas simétricas, finas camisas de bretanha, tiras de folhos e sapatos de fivela, cingindo, à força de apertadas com uma fita contra o peito, cruzes de marfim bento, símbolo de uma fé que nunca os caracterizou na vida. E os grandes devassos, os magros adúlteros que nos foyers das óperas e nos camarins das cantoras, nas casas de batota e nas alcovas fáceis fazem pública a sua dissolução e desonra, vinham também, diante da pequena, exibir a última elegância. Carolina, pelo número e aspecto dos convidados de um enterro, chegara à perfeição de fixar a posição social de qualquer defunto.
Os conselheiros reuniam graves figuras circunspectas de velhotes de luva preta e grandes pés, folgados em botas macias. Os condes faziam-se acompanhar dos coches da casa real, riqueza oxidada e rota, em que se sentiam os anos, os ratos e o óleo dos cabelos reais. Os escritores arrastavam figuras chupadas, de luneta, vastas cabeleiras polvilhadas de caspa, expectoração de discursos com gestos amplos e eloquência estrondosa. Conhecia o bombeiro, o polícia, o correio e juiz de irmandade. E odiava quem vinha só para entrar na cova, os que embarcavam para o outro mundo sem deixar, na gare, alguns amigos da infância, ou herdeiros de guardar conveniências. Ouvia nesses momentos dizer ao pai: súcia de vadios! Quando tinha de abrir cova sem receber gorjeta. E aprendera a dizer com ele esta frase profunda: até morrem pelo amor de Deus; cambada! Havendo enterro grande, punha uma garihaldi vermelha, azeite nos cabelos ruivos, sapatos de duraque preto, sem tacões e chatos como linguados. Toda risonha, ajoelhava na passagem do préstito, movendo os lábios como quem reza. Depois, na volta: uma esmolinha por aquela alma de Deus! E comprava pevides, amendoim torrado e alféloa, à tia Palma, uma de capote verde, sem um olho, que vinha vender à porta, num tabuleiro velho, secas gulodices de arraial. O que a abalava era aquela vida na casa das observações. Olhava já sem terror os cadáveres, como se fossem pessoas adormecidas no mesmo quarto, cada qual na sua maca de estalagem. Os homens, sobretudo. Alguns eram ainda novos, louros, pálidos e bem-feitos; alguns, ricos, tinham a pele fina, de um contacto cetinoso e bom.
Nas horas de calor, de Verão, quando sob os ciprestes os empregados do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com uma navalhinha as camisas; metia a mão devagarinho pelo peito, metia, escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer; o olhar dilatava-se-lhe, havia na sua face uma mancha de excitação, mordia os lábios, exaltada; e, palpando, estudando, compreendendo e adivinhando, ficava absorta, um pouco curvada sobre os corpos, o hálito ardente, uma palpitação larga e cheia de ímpeto. A sua imaginação rasgava as névoas indecisas que, diante da inteligente maldade, a sua inexperiência despregava como uma máscara casta e límpida cheia de placidez. Estas explorações fizeram-na muito cedo mulher, preparando-a a compreender mistérios e umas meias frases que ouvia aos gatos-pingados, se passavam por ela. Às vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam. Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara.
Duma vez tinha beijado sôfrega uma cara, com balbuciações aflitas, ardendo em pecado, como uma alma de réprobo. Não conhecera mãe, nunca uma boa mulher a beijara e o coveiro não reprimia diante da filha as suas expansões brutais. Entregue a si própria, chamuscada por carícias pérfidas de homens entregues à rota corrente da sua bestialidade, fizera-se nisto. Havia no entanto dentro dela, ainda, uma coisa ideal e inexplicável, certa virgindade infantil: de noite rezava! Vinham-lhe tristezas íntimas, a insónia triturava-lhe por vezes a saúde como num almofariz de bronze. Sem saber porquê, era desgraçada. Desejaria ser como uma pequena que vira um dia costurando à porta de uma carvoaria, com uma rosa nas tranças. Mas, de súbito, alguma coisa a arremessava à lembrança condenada dos homens adormecidos na casa das observações, e via-os surgir das suas mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a procurá-la; roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto, roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres. E estonteada, fitando no vácuo aquela visão candente, miserável nos seus quinze anos, sentava-se, extenuada e languescida, à sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos soberbos, com a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas comoções». In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.

Cortesia de LLivros/JDACT