terça-feira, 28 de junho de 2016

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Infelizmente, numerosas secções e mesmo simples páginas dos manuscritos de Berequias tinham sido reunidos fora da ordem por alguém manifestamente incapaz de ler o judeu-português. Era de enlouquecer. Levei dois meses para voltar a pôr tudo por ordem. Mas uma vez isso feito, o livro de Berequias Zarco lia-se perfeitamente. Os três manuscritos históricos no seu conjunto formam uma obra única, narrando a odisseia da família de Berequias durante os trágicos acontecimentos de Abril de 1506. Contam, em particular, a perseguição que Berequias moveu ao assassino do seu amado tio Abraão, um famoso cabalista provavelmente responsável por algumas das obras da Escola de Lisboa, até hoje consideradas anónimas, incluindo, por razões que a narrativa torna claras, Batendo às Portas e o Livro do Fruto Divino. São vários os breves relatos da matança que chegaram até nós, incluindo um de Salomão Ben Verga referido por Berequias, e não pode haver dúvidas quanto à veracidade da crónica de Berequias. Todos os principais acontecimentos aí relatados foram confirmados por escritos contemporâneos. Muitas das pessoas mencionadas, como Didi Molcho, João de Mascarenhas e Isaac Ben Farraj são nossos conhecidos através das suas obras assim como através de documentos da Igreja e da Coroa portuguesa. Alguns leitores menos familiarizados com a literatura sefardita e novo-cristã do século XVI poderão estranhar a minha reprodução da história de Berequias sob a forma de um mistério e o uso da linguagem coloquial. Berequias Zarco é, porém, como tantos dos seus contemporâneos, um autor moderno tanto na visão como no estilo. O segundo manuscrito, em especial, manifesta uma técnica directa que se assemelha à da novela picaresca espanhola, que começava a aparecer aproximadamente na mesma época dos manuscritos de Berequias. Curiosamente, muitos dos autores picarescos espanhóis eram também judeus convertidos. Berequias Zarco estava inegavelmente familiarizado com esses contemporâneos castelhanos.
Ao contrário das novelas picarescas, porém, o tom de Berequias quase nunca é irónico e nunca burlesco. Além disso, o seu personagem principal, ele próprio, não é nem um vilão nem um herói. É simplesmente aquilo que Berequias deve ter sido: um jovem inteligente e confuso, que fazia iluminuras, que vendia fruta e era cabalista; um jovem destroçado pela morte de seu tio. A linguagem franca de Berequias recorre a palavrões, afirmações claramente blasfemas e mesmo calão, que tentei manter na íntegra. Parece-me evidente que se a intenção de Berequias tivesse sido a de escrever mais um documento místico ou mesmo um texto histórico mais circunspecto, tê-lo-ia feito. Tinha talento e conhecimentos para tanto. A verdade é que não o fez. Escreveu um mistério em três partes, a última das quais poderia ser considerada pelos críticos contemporâneos como um epílogo. Tendo em atenção o leitor moderno, dividi essas três partes em vinte capítulos. Os capítulos I a VIII correspondem ao primeiro dos manuscritos de Berequias; do IX ao XX, ao segundo manuscrito; e o XXI ao terceiro. Apesar de O último Cabalista de Lisboa ser mais que uma tradução, mantive-me rigorosamente fiel ao conteúdo do escrito de Berequias, a não ser em dois casos: quando ele inclui extensas recitações de orações e de cânticos; e quando faz digressões sobre pontos espirituais associados aos arcanos essenciais relacionados com a Cabala. Apesar de se revestirem de interesse académico, seriam provavelmente dificultosos e aborrecidos para o leitor, e excluí-os por isso da minha transcrição. Do mesmo modo, várias secções foram reordenadas segundo a ordem cronológica, quando antes estavam ligadas segundo a tese espiritual que Berequias procurava demonstrar. Creio que também este facto não altera de modo substancial a obra de Berequias, e a estrutura que adoptei fará certamente mais sentido para o leitor moderno.
De um modo geral, procurei estabelecer um equilíbrio entre a linguagem contemporânea e o uso ocasional de uma ou outra palavra ou frase mais antiga. No seu conjunto, a obra permanece, assim o espero, fiel ao espírito do autor. Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos. Por isso mesmo, as transcrições do português são feitas de acordo com as convenções actuais. Sempre que se transcrevem palavras hebraicas, recorre-se aos caracteres latinos, de modo a poderem ser pronunciados pelos leitores americanos e europeus. Os manuscritos de Berequias levantam algumas questões importantes sobre a história dos livros hebraicos na Ibéria. Será a Tora ilustrada que ele descobre na geniza de seu tio a chamada Bíblia de Kennicott, que hoje pertence à Biblioteca Bodleian da Universidade de Oxford? A referência às letras em forma de animal e a Isaac Bracarense (indubitavelmente Isaac de Braga, por quem o manuscrito foi ilustrado) parece indicar nessa direcção. Nada se sabe da história da Bíblia desde a data do seu acabamento em 1476 até à sua aquisição em 1771 por Oxford, a conselho do bibliotecário, Kennicott. Talvez tenha de facto sido salva por Abraão e Berequias Zarco. Quanto à versão hebraica e árabe da Fonte da Vida detida por frei Carlos: teria sido realmente passada para Salónica? Que lhe terá, então, acontecido? Nunca foi encontrado nenhum original árabe, apenas traduções latinas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT