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Sancho
II e dona Mécia
«(…)
As palavras roucas de Sancho ecoaram pela noite. Por instantes, apenas se ouvia
o casco de um ou outro cavalo, um resfolgar, um galo cantando, ao longe. De
repente, começa a trovejar. Não eram trovões, verdadeiramente, mas uma chuva de
pedras. Eram lançadas do topo do castelo. Aproximavam-se, estalavam num elmo,
assustavam os cavalos. Continuavam a cair. Caíam cada vez mais. Sancho dava alguns
passos atrás e assim faziam os seus homens. Protegia a cabeça atrás dum braço e
os seus homens recuavam ainda mais. A chuva de pedra continuava e Sancho olhou,
desamparado, os seus homens; depois, o chão. Talvez tenha contemplado o castelo
uma última vez, gritado o nome de Mécia contra a muralha. O eco espalhou esse
nome pelo horizonte, se ele foi, de facto, gritado. Sancho montou o cavalo,
picou-o com as esporas e partiu, e os homens atrás dele.
A
luta por dona Mécia terminara ali, em Ourém, mas não a guerra pelo trono de
Portugal. Sancho II voltaria ao campo de batalha, voltaria a ter o apoio
militar do príncipe de Leão e Castela, o futuro Afonso X, filho de Fernando
III. Essa ajuda seria preciosa para que voltasse a derrotar o irmão, desta feita
em Leiria. Mas as pressões do papa para que abdicasse do trono continuariam, as
batalhas também e Afonso X acabaria por voltar a Leão e Castela, deixando
Sancho só. Cansado, desiludido e doente, o rei abdicaria do trono em 1247,
ainda que não tivesse perdido uma só batalha para o irmão. Exilou-se em Toledo
e pouco mais durou. Morreu a 4 de Janeiro do ano seguinte, teria 38 ou 39 anos,
25 dos quais vividos como rei. Já não lhe fazia diferença. Primeiro, ficara sem
irmão, depois sem mulher e, por fim, sem reino. Que diferença fazia agora ficar
sem vida?
Uma
última curiosidade a propósito do quarto rei de Portugal: foi o único, em toda
a primeira dinastia, que não teve filhos. Nem naturais, nem bastardos. E não se
lhe conheceram amantes. O momento cruciante da vida de Sancho, aquele em que
lhe foi retirado o último apoio com que contava, a mulher, ficaria para sempre
envolto em dúvida. A rainha fora sequestrada, de facto? Ou apenas levada com a
sua conivência? A verdade é que fora raptada do paço sem grande resistência, e
daí para Ourém, que era um castelo que lhe pertencia, e que, depois disso,
partiu para Castela, vivendo tranquilamente em terras do cunhado. E que terá
morrido provavelmente em Palência, onde possuía terras, em 1270, muitos anos
depois do marido. Muitos anos em que nada parece ter feito em particular para
lembrar ou defender a honra desse desgraçado Sancho II.
Quanto
ao irmão usurpador, a verdade é que só aceitaria ser oficialmente coroado rei
depois da morte do irmão. Tornou-se então Afonso III e, se hoje não o
recordamos como um malfeitor ou, pelo menos, uma das mais dúbias figuras que
subiu ao trono nacional, foi porque Afonso soube apagar depressa a memória
daqueles anos de guerra com o irmão com estrondosas vitórias militares, que fariam
com que, logo em 1249, tivesse conquistado todo o Algarve e alcançado o
Mediterrâneo. E assim, passados pouco mais de cem anos da fundação, Portugal
continental ganhava já, com ligeiros ajustes, o desenho que lhe conhecemos até hoje.
A
história poderia terminar assim, mas falta falar de alguns pormenores curiosos.
É que Afonso III estava longe de ser a pessoa prudente que o papa recomendara
para governador e defensor do reino. Naqueles 15 anos que vivera por França,
levara uma vida folgada e boémia. O cognome de o Bolonhês pode dar-lhe uma aura de viajante cosmopolita, mas, em
rigor, devia-se apenas ao facto de ser casado com dona Matilde, viúva de Filipe
Hurupel e condessa de, entre outras terras, Bolonha. O casamento acontecera em
1238, mas, como sabemos, desde 1245 que Afonso vivia em Portugal, de modo a dar
batalha ao irmão. Ora, quando Sancho morreu, em 1248, e o Bolonhês se sentiu, enfim, livre de consciência para tomar a
Coroa, decidiu também casar com dona Beatriz Gusmão, como se uma vida nova ali
tivesse começado e não houvesse uma outra para trás, que incluísse uma esposa
poderosa, algures deixada em França». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de
Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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