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Oiço o rumorejar das folhas da trepadeira e os sussurros que a noite contém no seu
regaço de vidro. Este silêncio onde crepitam os astros e balbuciam os seres quase
inanimados da natureza, escutei-o muitas vezes nos meus exílios, de mistura com
o bater cadenciado e surdo das ondas na areia. Os luares opala e sangue de Pontia,
a agonia da última hora em Antium, a luz quase ametista sobre o mar cor de vinho
no meu regresso a Misenum. E hoje, que coisa estranha, neste nó do tempo onde a
nossa vida se decide e dissolve sinto a certeza de que tudo esteve certo desde o
início como se toda a minha vida, desde os tempos frígidos da Germânia bárbara onde
nasci nesse duro Inverno de Ara Ubiorum, até ao derradeiro banquete no Palatino,
tivesse só um único significado e este único fim. Hoje preciso de utilizar somente
as palavras necessárias e despojar o meu pensamento de tudo o que é adventício,
secundário, banal. Que os deuses, apesar de tudo, me deixem morrer na plena
consciência de meus crimes assim como da minha inocência, porque hoje consagra-se
o meu destino no altar do sacrifício que constituirá o sinete terrível gravado na
fronte de Lúcio Domício e que expiação terrível ele irá sofrer! Não, a ele nem lhe
será poupada esta hora, de morrer com a dignidade dos nossos maiores. Ele, o meu
Domício, o meu filho, vai morrer como um cão e rastejar como um verme no seio da
sua própria morte. Ele já há algum tempo esqueceu tudo mas eu não esqueci nem
poderei jamais esquecer que sou a filha de Germânico e a herdeira natural de
Augusto e que o preço do poder como o do génio ou é a morte anónima e infame ou
a púrpura imperial.
Eu
cantarei coisas terríveis... Recordo Ovídio e relembro também Virgílio e a sua
basta cabeleira branca, o seu corpo esguio e levemente corcovado. Eu não o recordo
pessoalmente mas a minha avó Antónia costumava relatar os momentos em que frente
a Augusto, Virgílio leu alguns, bem poucos por sinal, passos da Eneida. Virgílio
e Horácio, os eternos solteirões do Principado, cujo túmulo será desconhecido
dos vindouros. Aí existe uma certa justiça dos deuses. Os poetas não devem ter
túmulos. Pertencem à Eternidade. Aeternitas. Eis uma palavra pura.
Aliás, essa é uma das grandes dádivas do nosso destino romano, esta língua dura
mas flexível, rica, solene precisa e terrivelmente bela. Verba Manent. Às
vezes nem isso. Durante as noites do meu desespero quando acontecia sonhar com Roma
e o futuro quantas vezes me perguntei qual o destino nosso, da Urbe do Império que
é o mundo, das suas obras, deste imenso destino do qual o Homem Romano é apenas
o sagrado mediador? Aterroriza-me apesar das certezas de meus avós e apesar do conjunto
quase perfeito do sistema romano, pensar nos povos que nos precederam e cuja
memória, se não fôssemos nós, ter-se-ia perdido. Um dia, da poeira dos
milénios, restará ainda alguma coisa da nossa história, da nossa cultura, ou tudo
se reduzirá a cinzas e toda a vida tumultuosa e rica do Império será apenas um
ignoto dia nefasto para os vindouros, apagado pelo sal da incompreensão e da
intolerância?
Recordo,
oh! Como hoje recordo meu pai!, e o seu calmo olhar luminoso e azul que fitava
o horizonte como se visse para lá da cortina do tempo: a mais saudável forma de sabedoria é a tolerância. Nada é definitivo
nem os deuses, porque a ideia que temos deles fomos nós que a construímos e é, portanto,
necessariamente imperfeita. Nasci na Germânia. Num local calmo, não fora os
problemas que as fronteiras com os territórios bárbaros levantam ao governo do Império.
Nasci em Novembro na terra dos Úbios, hoje Colónia, desde Cláudio meu tio e meu
marido. Não só em meu nome se chama hoje Colonia Arae Agrippinensium. Mas
em honra do meu avô, Marco Agripa, que a fundou e pacificou toda a região, ele
que foi o braço direito de Augusto e também um dos grandes génios do Principado.
Sem dúvida meu avô Marco foi um homem dos mais ilustres deste século. O busto de
mármore de Paros que guardo na minha casa de Antium recorda-me frequentemente a
nobreza da sua alma de velho Romano, a integridade do seu carácter a fidelidade
a Augusto, que ele sabiamente selou com o seu destino e a sua vontade sabendo
que servindo Augusto servia o Estado. Foi em sua honra mais que em minha, apesar
dos vícios de que me acusam e da língua feroz de meus inimigos neste momento em
que sabem que perdi o meu lugar junto do Imperador, pois foi em honra de Marco Agripa
que o acampamento, onde meu outro avô Druso ergueu um altar à Victória e ao Império
e eu nasci, se transformou numa colónia de veteranos. Há laços fundos de sangue
e de glória que nos ligam à Germânia e laços de honra também. No início de Novembro
de 768 do ano da fundação da Cidade minha mãe deu à luz uma rapariga, a primeira
das três filhas que sobreviveram. Já tinha três filhos varões: Nero, Druso,
Caio. Antes, dois filhos mortos na infância... Eu fui a primeira das raparigas.
Depois de mim ainda nasceram Drusilla e Julia Livilla. O nome que me puseram foi
Júlia Agripina. Agripina como minha mãe e Júlia como minha avó. Augusto morrera
apenas há cerca de um ano e três meses, em Nola, na Itália, em Agosto. Meu pai,
quando morreu Augusto, achava-se na Gália a supervisionar o recenseamento. Foi nesse
momento que se iniciou a revolta das Legiões V e XXI na Germania Secunda. Pouco
depois da morte do fundador do Principado, no seu exílio de Regium, extinguia-se
minha avó Júlia...» In Seomara Veiga Ferreira, Memórias de Agripina, 1993, Editorial
Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-231-664-4.
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