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Ossos velhos
«(…) Sacudiu a mão livre, tal como
lhe tinham ensinado, varrendo-a através da imundice. A mão começou a bater em
coisas. No meio daquela escuridão, com as espessas luvas calçadas, era difícil saber
que tipo de coisas eram: ramos de árvores, cambotas, terríveis emaranhados de
arame, enfim, toda uma colecção de desperdícios capturados neste cemitério de lama.
Resolveu descer mais três metros antes de voltar à superfície. E o cab… do
Fernandez, que se atrevesse a troçar dele, depois disto. Bruscamente, o braço
bateu contra qualquer coisa. Quando puxou por ela, o objecto deslizou na sua
direcção com aquele tipo de lenta resistência que implicava um certo peso. Snow
enrolou a corda de segurança na cova do braço direito e tocou-lhe. Fosse o que
fosse, não era o tijolo de heroína- Deixou-a cair. A coisa contornou-o, a
rodopiar na corrente pastosa provocada pelo movimento das barbatanas, e foi
bater-lhe no meio da escuridão, arrancando-lhe a máscara da cabeça e o
regulador de oxigénio da boca. Logo que conseguiu restabelecer o equilíbrio Snow
passou a mão sobre o objecto em busca de um ponto de apoio por onde pudesse
afastá-lo para longe. Era como se tivesse enfiado os dedos num novelo qualquer.
Talvez um grosso ramo de uma árvore. Porém, este era inexplicavelmente mole em
alguns pontos. Apalpou-o, sentindo as superfícies mais lisas, as excrescências rotundas,
as protuberâncias flexíveis. Então, num repente, percebeu que estava a tocar
num osso. E não apenas num só osso, mas em vários, ligados uns aos outros por
farripas de tendões. Tratava-se dos restos quase esqueléticos de um bicho
qualquer, talvez de um cavalo; porém, à medida que ia percorrendo os ossos com
as mãos, concluiu que só podia tratar-se de um ser humano.
Um esqueleto humano. Uma vez mais,
esforçou-se por controlar a respiração e pôr as ideias em ordem. O bom senso e
o treino diziam-lhe que não podia abandoná-lo ali. Tinha de o levar consigo. Começou
a enrolar a corda de segurança em torno da cintura e depois à volta dos ossos
mais compridos, tão bem quanto lhe era possível fazê-lo, no meio do espesso
lamaçal. Partiu do princípio que ainda haveria suficientes tendões a ligar os
ossos para conseguir trazer aquela coisa numa única viagem. Snow nunca antes
tinha tentado dar um nó com os dedos enluvados, no meio do lodo, numa escuridão
de breu. Isto era algo que o brigadeiro não lhe ensinara durante os treinos. Afinal
não tinha encontrado a heroína. Mas mesmo assim estava cheio de sorte por ter
tropeçado em algo tão importante. Quem sabe se não se trataria de um crime
ainda por resolver? O sacana do Fernandez ia roer-se de inveja quando visse o corpo.
E, contudo, Snow não se sentia nada satisfeito. Só desejava pôr-se a andar dali
para fora o mais depressa possível.
Tinha a respiração curta e
acelerada. Já nem sequer fazia um esforço para a controlar. O fato estava frio,
mas também não podia dar-se ao luxo de perder tempo a insuflá-lo. A corda deu
de si e Snow abraçou-se ao esqueleto no meio do lodo, esforçando-se para não o
deixar cair. Ainda não tinha deixado de pensar nos metros de lama que tinha por
cima da cabeça, no lodo a remoinhar sobre a lama e por fim na zona de águas
viscosas que a luz do Sol nunca chegava a penetrar... A corda apertou-se um
pouco mais e Snow soltou um suspiro mental de agradecimento. Agora só tinha de
verificar se ela continuava fixa e dar três puxões à linha para assinalar que tinha
encontrado qualquer coisa. E depois poderia subir por ela acima para bem longe
deste negro horror, entrar na embarcação e partir rumo à terra firme onde
tomaria um duche de noventa minutos logo seguido de uma grande bebedeira, para
só então começar a pensar se não deveria pedir para voltar ao antigo emprego.
Lembrou-se que a época da pesca submarina começava já daqui a um mês. Verificou
a corda e apertou-a mais em torno do cadáver. As mãos elevaram-se um pouco, em
busca das costelas, do esterno. Enrolou um pouco mais de corda à volta dos ossos,
certificando-se de que os laços estavam bem apertados e que a corda não ia
deslizar quando o puxassem na direcção da superfície. Os dedos continuaram a
subir até que se deram conta de que a coluna vertebral terminava apenas num
pedaço de lama negra. Quanto à cabeça, nada de nada. Instintivamente, afastou a
mão e só então compreendeu, num surto de pânico que tinha largado a corda de segurança.
Começou a sacudir os braços em volta e tornou a bater com eles em qualquer
coisa: era o esqueleto. Alivado abraçou-se a ele em desespero de causa.
Rapidamente, apalpou-o um pouco mais abaixo em busca da corda, com os dedos a
percorrerem as ossadas, esforçando-se por se recordar onde raio a tinha
amarrado. A corda já ali não estava. Como é que se tinha soltado? Não, isso era
impossível. Tentou sacudi-lo, dar-lhe a volta, sempre em busca da corda, e de
súbito sentiu o tubo do ar ensarilhar-se em qualquer coisa. Recuou, de novo
desorientado, e sentiu os selos da máscara a perderem adesão ao rosto. Qualquer
coisa quente e espessa começou a esgueirar-se para o interior. Tentou soltar-se
e sentiu que lhe arrancavam a máscara. Uma torrente de lama cobriu-lhe os
olhos, enfiou-se-lhe pelo nariz, sugou-lhe o interior do ouvido esquerdo. No
cúmulo do horror percebeu que estava ensarilhado num macabro abraço com um
segundo esqueleto. E só então perdeu completamente o tino, num acesso de pânico
cego». In Douglas Preston e Lincoln Child, Relicário, O inferno fica debaixo
da terra, tradução de João Barreiros, Saída de Emergência, 2009, ISBN
978-989-637-126-5.
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