sexta-feira, 3 de junho de 2016

Helena de Tróia. Margaret George. «A minha visita a Tróia não passara de um sonho. E até aquilo que tinha permanecido nesse sonho agradável, as muralhas, as torres, as ruas e os edifícios, tinha desaparecido. Não restara nada»

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«(…) Como nunca estivera. As pedras não eram exactamente assim, não; não tínhamos conseguido as pedras vermelhas de Frígia e tínhamos precisado de as substituir por umas mais escuras de Lesbos. Contudo, lá estavam as vermelhas, unidas com argamassa e no seu sítio. Por um instante senti-me deslumbrada com isto e fiquei a olhar boquiaberta. Não, não era assim a não ser na nossa imaginação, murmurei eu como se as pedras fossem brilhar e rearranjar-se ao som das minhas palavras. Mas permaneceram teimosamente como estavam. Encolhi os ombros. Não importava. Entrei no palácio, atravessei o amplo megarón e subi as escadas até ao mais privativo dos nossos aposentos, os aposentos para onde Páris e eu nos retirávamos quando terminavam finalmente as tarefas do dia e podíamos ficar a sós. As minhas passadas ecoavam. Porque estaria tão vazio? Era como se tivesse sido enfeitiçado. Não havia qualquer movimento, não se ouvia qualquer voz. Parei à porta do quarto. Páris devia estar ali. Estava à minha espera. Regressara dos campos, da doma dos cavalos mais selvagens, como tanto adorava fazer e devia estar naquela altura a beber um copo de vinho e a massajar uma ou duas contusões resultantes do trabalho daquele dia. Levantaria os olhos e diria: Helena, o cavalo branco de que te falei... Abri resolutamente as portas. O quarto estava assustadoramente silencioso. Também estava escuro. Entrei, e o sussurro do meu vestido em redor dos pés era o único barulho. Páris?, disse eu... , a primeira palavra que proferia. Nas histórias, as pessoas são transformadas em pedra. Mas aqui tinham desaparecido. Girei e tornei a girar, procurando alguém nos aposentos, mas não havia nada. A concha de Tróia permanecia, os seus palácios, paredes e ruas, mas tinha sido despojada daquilo que a tornava verdadeiramente grandiosa, a sua gente. E Páris..., onde estás, Páris? Se não estás aqui, na nossa casa, onde estás?
Vi a luz do Sol e dei graças por alguém ter aberto as portadas. Agora Tróia podia recomeçar a viver; agora o brilho do Sol iria inundá-la. As ruas encher-se-iam de novo com pessoas e ressuscitariam. Tróia não tinha desaparecido, tinha apenas adormecido. Agora podia acordar. Minha senhora, está na hora. Alguém tocava no meu ombro. Dormiste demasiado tempo. Mas eu continuava agarrada a Tróia, no quarto do meu palácio. Páris já devia ter chegado. Claro que sim! Ele ia chegar! Sei que é difícil, mas tens de acordar. Era a voz da criada de quarto. Menelau só pode ser enterrado uma vez. E hoje é o dia. As minhas condolências, minha senhora. Sê forte. Menelau! Abri os olhos e olhei esgazeadamente em volta. Aquele quarto, não era o meu quarto em Tróia. Oh, deuses! Eu estava em Esparta e Menelau estava morto. Menelau, o meu marido espartano, estava morto. O troiano Páris não estava ali. Já lá não estava havia trinta anos. Tróia já não existia. Eu já nem lhe podia chamar uma ruína fumegante pois o seu fumo há muito fora engolido pelo céu. Tróia estava tão morta que até as suas cinzas tinham sido dispersadas.
A minha visita a Tróia não passara de um sonho. E até aquilo que tinha permanecido nesse sonho agradável, as muralhas, as torres, as ruas e os edifícios, tinha desaparecido. Não restara nada. Chorei. Uma mão suave no meu ombro. Sei que sofres por ele, disse ela. Mas mesmo assim, tens... Pus os pés fora da cama. Eu sei. Tenho de ir ao funeral. Não, mais do que isso, tenho de o presidir. Levantei-me, ligeiramente zonza. Sei qual é o meu dever. Minha senhora, eu não queria... Claro que não. Por favor, escolhe as minhas roupas. Pronto, isso ia livrar-me dela. Pressionei as têmporas com as pontas dos dedos. Menelau morto. Sim. Era verdade. A sua confissão, a sua súplica, tudo a mesma coisa. Eu perdoava-o. Tinha sido há tanto tempo. E Páris: as gerações vindouras comporão canções sobre nós, dissera-lhe eu. Que jovem tola eu fora. Ele tinha desaparecido. Não se encontrava no meu sonho, e eu sabia agora que se tinha tratado de um sonho. Páris e eu já não estávamos juntos. Não importava. O sonho tinha-me mostrado o caminho. Eu ia regressar a Tróia após o funeral, depois de estar tudo orientado em Esparta. Tinha de voltar a vê-la, por mais vazia e arruinada que pudesse estar. Era onde eu tinha vivido mais plenamente, onde Helena se tinha transformado verdadeiramente em Helena e se tornara Helena de Tróia». In Margaret George, Helena de Tróia, 2006, tradução de Isabel Penteado, (Chádascinco, livros com sexto sentido), Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-803-276-8.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT