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Pedro
V e dona Estefânia
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Pedro V e dona Estefânia foram um caso especial. Entre tantos casamentos de
conveniência e sacrifício, famílias reais que se apresentavam como meras instituições
públicas onde nada de verdadeiramente íntimo morava, Portugal foi surpreendido por
um rei e uma rainha que se amavam de facto. Como um vulgar casal de namorados, eram
vistos a passear de mão dada, a caminhar pelos jardins de Sintra, a olharem-se nos
olhos recatadamente no privado silêncio do seu segredo. Todo o tempo que tinha livre
dos afazeres da governação, Pedro dedicava-o a Estefânia. Se, porventura, isso
não era possível, encomendava aos mensageiros a tarefa de atenuar esse afastamento:
nós somos dois adolescentes, escrevia Estefânia numa carta à mãe. quando
Pedro saiu para caçar durante três dias, trocámos correspondência, escrevendo quatro
cartas cada um. Passados alguns meses, já os jornais asseguravam ter tido acesso
a fontes fidedignas que lhes asseveram que a rainha se encontrava grávida. Pouco
depois, os rumores eram desmentidos por outras fontes ainda mais fidedignas. Pedro
e Estefânia riam dos boatos, das renovadas formas como apareciam, de coisas simples.
Preferiam os passeios por Benfica, as visitas à infanta Isabel Maria, os chás no
paço, o gozo da pureza, do seu amor, nas palavras da rainha, que continuava a ter
a mãe por testemunha epistolar daquele raro caso de conto de fadas.
Vida
privada à parte, rei e rainha também partilharam uma mesma visão política assente
em valores sociais. Juntos, fundaram hospitais públicos e instituições de caridade.
Até que veio aquele dia, no Verão seguinte. Estefânia sente-se mal no regresso de
um passeio de barco pela Trafaria. Dias depois, numa volta a pé por Vendas Novas,
não resiste ao calor intenso. A rainha é internada e o seu estado de saúde agrava-se.
Pedro V passa o tempo inteiro no hospital, à cabeceira da cama. Já o fizera
tantas vezes por desconhecidos; agora, fazia-o pela mulher, velando como um anjo-da-guarda
belo e triste pelo fim da dor. Dois dias depois de completar 22 anos, à primeira
hora da madrugada de 17 de Julho de 1859, dona Estefânia sucumbia a uma angina diftérica.
As suas últimas palavras terão sido: consolem o meu Pedro. Quando o cadáver
era vestido com um traje branco, o médico chamou a camareira-mor, pedindo-lhe que,
em vez do diadema, voltasse a colocar sob a cabeça de dona Estefânia uma coroa
de flores de laranjeira. Pedro tentou como pôde conservar a pose de Estado na missiva
em que informava do sucedido o duque da Terceira, presidente do Conselho de Ministros:
eu e os meus povos temos sido
companheiros de infortúnio. Diz-me a consciência que os não abandonei... Era um
coração para a terra e um espírito para o céu. De 15 em 15 minutos, salvas de
canhões cobriram o reino com uma imensa e pesada mortalha, que não seria esquecida
enquanto vivesse o rei esperançoso. A rainha Vitória escreveu ao rei Leopoldo consolando-o
pelo trágico desaparecimento da irmã. Entre a incompreensão pelo absurdo da morte,
tentava fazê-lo ver o mesmo paraíso onde ela via, agora, Estefânia.
O
rei sofreu terrivelmente com a perda da mulher. Tornou-se ainda mais fechado, solitário
e triste. Enquanto viveu, mais nenhuma mulher foi vista a seu lado nem os jornais
se permitiram fazer circular qualquer rumor. E envelheceu. Envelheceu muito e precocemente.
Alexandre Herculano, amigo e mestre, chamou-lhe um velho de 22 anos. Esse
mesmo Herculano a quem nunca ninguém vira chorar como no dia em que soube da morte
da rainha. O cansaço de viver não impediu, contudo, Pedro V de continuar a
governar. Na senda do trabalho da mãe, funda, à custa da sua solitária teimosia,
a Escola Normal, a Direcção-Geral de Instrução e o Curso Superior de Letras, futura
Faculdade de Letras de Lisboa, que financia directamente com 91 contos saídos das
suas rendas pessoais. E, em cumprimento de um desejo da mulher, manda iniciar a
construção de um hospital dedicado a crianças. No entanto, não sobreviveria muito
tempo a Estefânia, como talvez fosse seu desejo inconfessável. Depois de ter passado
incólume por alas de hospitais repletas de doentes de cólera e febre-amarela, Pedro
V não resistiu a uma banal viagem ao Alentejo. Em Outubro de 1861, já regressa doente
com um vírus misterioso de uma ida a Vila Viçosa com alguns dos irmãos. Fernando
é o primeiro a sucumbir; a l1 de Novembro, o próprio rei; depois, Augusto. Por fim,
já em Dezembro, é a vez de João, com sintomas em tudo semelhantes.
De uma
penada, desaparecia toda a família real, com excepção de Luís. O medo voltou a abater-se,
mais medonho que nunca, sobre o país. Circularam teorias da conspiração,
envenenamento, assassínio em massa. Seria um Natal terrível, em luto nacional, interrompido
por tumultos nas ruas. José Estêvão descreveria brilhantemente a angústia daqueles
acontecimentos: era a anarquia da dor protestando contra o despotismo da morte.
Pedro V morreu em casa, no Palácio das Necessidades, onde nascera 24 anos antes.
Bastaram-lhe os últimos oito para ser um dos mais marcantes reis de Portugal e viver
uma das mais trágicas histórias de amor que o país conheceu. Causa provável da morte:
febre tifóide. Foi a enterrar no Panteão Real de São Vicente de Fora, ao lado da
mulher, belos e puros como dois anjos caídos, deixando ao país uma suave ilusão
de eterna juventude e perfeição. Anos mais tarde, a revelação de alguns
pormenores contidos no relatório da autópsia a dona Estefânia confundiria o
país: em consequência da difteria, as falsas membranas tinham-se propagado à vulva
da rainha. Ao examiná-la, aos médicos deparou-se-lhes o hímen intacto. Os súbditos
preferiram não se fazer muitas perguntas. Se Pedro e Estefânia se compreenderam,
desde o primeiro momento, em silêncio, o país faria o possível por não o perturbar
com palavras.
Único
Bragança a sobreviver ao colapso, Luís regressou de França para subir ao trono.
Foi já ele quem inaugurou, a 17 de Julho de 1977 , o hospital iniciado pelo irmão.
O serviço de maternidade foi baptizado Magalhães Coutinho, seu companheiro nas investidas
pela noite de Lisboa, mas é o nome da cunhada que o hospital ostenta até hoje».
In
Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas,
2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
Cortesia
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