domingo, 19 de junho de 2016

Camões. A Infanta dona Maria. José Maria Rodrigues. «Não é para mim motivo de afflicção o receio, o temor de me esquecer da infanta, pois esse receio seria signal de que a esperança ainda não estava todo morta em mim»

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No Oriente
«[…]
Parece-me ter sido também escripto durante o cruzeiro o seguinte soneto, conservado no Cancioneiro de Franco Correia:

Ondas, que, por el mundo caminando,
Contino vais llevadas por el viento,
Levad embuelto en vos mi pensamiento
Do está la que, do está, lo está causando.

Dezilde que os estoi acrecentando;
Dezilde que de vida no hai momento;
Dezilde que no muere mi tormento;
Dezilde que no vivo ia esperando.

Dezilde quã perdido me hallastes;
Dezilde quã ganado me perdistes;
Dezilde quã sin vida me matastes.

Dezilde quã llagado me heristes;
Dezilde quã sin mi que me dexastes;
Dezilde quã con ella que me vistes.

Quando Camões voltou a Goa, ancioso por que findasse o seu triennio de serviço militar, para poder embarcar para o reino, governava a Índia Francisco Barreto, tio de dona Francisca d'Aragão, a musa invocada para os Lusíadas. Ou por indicações que lhe foram de Lisboa ou mesmo sem ellas, Francisco Barreto, recorrendo a amigáveis conselhos ou chegando talvez mesmo a interpor a sua auctoridade, evitou que o apaixonado poeta satisfizesse o desejo ardente, que lhe não soffria detença, de tornar a ver, servir e querer a bem-amada. Que vinha elle fazer para o reino? O governador da Índia teve occasião de conhecer de visu a exaltação amorosa do poeta, quando em Gôa assistiu á representação do Filodemo, posto em scena para festejar a sua elevação áquelle cargo. Com que calor, com que enthusiasmo, saído do fundo do coração, não desempenharia Camões o papel do protagonista, apaixonado pela filha de seu amo?
Evidentemente praticar loucuras e comprometter quem, por todos os motivos, devia ser respeitada e deixada em paz. Não lhe era melhor ir para as Molucas ou para outras terras orientaes angariar alguns meios de fortuna? Provido ou não d'um cargo, contra vontade ou meio convencido, o poeta lá foi para o Extremo Oriente, não sem ver em tudo isto o dedo da infanta, não sem lhe attribuir parte no seu tão longo e misero desterro. Ouçamo-lo:

Com força desusada
Aquenta o fogo eterno
Uma ilha, nas partes do Oriente,
De estranhos habitada,

Aonde o duro inverno
Os campos reverdece alegremente.
A lusitana gente
Por armas sanguinosas
Tem della o senhorio.

Cercada está de um rio
De maritimas aguas saudosas.
Das hervas que aqui nascem
Os gados juntamente e os olhos pascem.
Aqui minha ventura

Quis que uma grande parte
Da vida, que eu não tinha, se passasse,
Para que a sepultura
Nas mãos do fero Marte
De sangue e de lembranças matizasse.

Se Amor determinasse
Que, a troco desta vida,
De mi qualquer memoria
Ficasse como historia,
Que de uns formosos olhos fosse lida,

A vida e a alegria
Por tão doce memoria trocaria!
Mas este fingimento,
Por minha dura sorte,
Com falsas esperanças me convida.

Não cuide o pensamento
Que póde achar na morte
O que não pôde achar tão longa vida.
Está já tão perdida
A minha confiança,

Que, de desesperado
Em ver meu triste estado,
Também da morte perco a esperança.
Mas oh! que se algum dia
Desesperar pudesse, viveria.

De quanto tenho visto
Já agora não me espanto,
Que até desesperar se me defende.
Outrem foi causa disto,
Pois eu nunca fui tanto,

Que causasse este fogo que me incende.
Se cuidam que me offende
Temor de esquecimento.
Oxalá meu perigo
Me fora tão amigo,

Que algum temor deixara ao pensamento!
Quem viu tamanho enleio,
Que houvesse ahi 'sperança sem receio?
Quem tem que perder possa
Só pode recear.
[…]

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

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