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e wikipedia
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Os muçulmanos de Medina acreditam que assassinar um infiel é obrigatório se ele
não se converter voluntariamente ao islão. Pregam a jihad e glorificam a morte pelo
martírio. Os homens e mulheres que aderem a grupos como Al-Qaeda, EI, Boko
Haram e Al-Shabaab na minha Somália natal, para citar apenas quatro dentre
centenas de organizações jihadistas, são todos muçulmanos de Medina. E são
minoria esses muçulmanos de Medina? Ed Husain estima que apenas 3% dos
muçulmanos do mundo concebem o islã nesses termos belicosos. Mas acontece que
3% de mais de 1,6 bilhão de crentes, 23% da população mundial, são 48 milhões:
parece mais do que suficiente. Com base em levantamentos das atitudes em
relação à sharia em países muçulmanos, calculo que a parcela é
significativamente maior. Também acredito que ela está crescendo, conforme muçulmanos
e convertidos ao islamismo gravitam em torno de Medina. Seja como for, os
muçulmanos desse grupo não são susceptíveis à persuasão ou envolvimento pelos
liberais ocidentais ou reformistas muçulmanos. Eles não são o público visado por
este livro. São a razão de ele ter sido escrito.
O
segundo grupo, sem dúvida alguma a maioria em todo o mundo muçulmano, compõe-se
daqueles que são leais ao credo fundamental e fazem as suas devoções com
fervor, mas não se sentem inclinados a praticar violência. Chamo-os de
muçulmanos de Meca. Como os cristãos ou judeus devotos que seguem os serviços
religiosos diariamente e cumprem regras religiosas na alimentação e no vestuário,
os muçulmanos de Meca concentram-se na observância religiosa. Fui criada como
uma muçulmana de Meca. Assim como a maioria dos muçulmanos, de Casablanca a
Jacarta. Mas os muçulmanos de Meca têm um problema: as suas crenças religiosas
vivem em incómoda tensão com a modernidade, o complexo das inovações económicas,
culturais e políticas que não só remodelou o mundo ocidental mas também
transformou tremendamente o mundo em desenvolvimento à medida que o Ocidente o exportou.
Os valores racionais, seculares e individualistas da modernidade são
fundamentalmente corrosivos para as sociedades tradicionais, sobretudo para as
hierarquias baseadas em género, idade e status herdado.
Em
países de maioria muçulmana, pode ser limitada a capacidade da modernidade para
transformar as relações económicas, sociais e (em última instância) as de
poder. Nessas sociedades, os muçulmanos podem usar telefone móvel e computador
sem necessariamente ver um conflito entre a sua fé religiosa e a mentalidade
racionalista e secular que possibilitou a tecnologia moderna. No Ocidente,
contudo, onde o islão é uma religião minoritária, os muçulmanos devotos vivem numa
condição que se poderia descrever muito bem como dissonância cognitiva. Encurralados
entre dois mundos de crenças e experiências, esses muçulmanos travam uma luta
diária para seguir o islamismo no contexto de uma sociedade secular e
pluralista que contesta os valores e crenças islâmicos a cada momento. Muitos
só conseguem resolver essas tensões isolando-se em enclaves (que cada vez mais
são autogovernados). Chama-se encasulamento
essa prática na qual os imigrantes muçulmanos tentam barrar as influências
externas, permitindo apenas a educação islâmica para os seus filhos e desligando-se
da comunidade não muçulmana maior.
Para
muitos desses muçulmanos, após anos de dissonância parece haver apenas duas
alternativas: deixar o islão de uma vez, como eu fiz, ou abandonar a insípida
rotina de observância diária em favor do credo islâmico inflexível oferecido por
aqueles que rejeitam explicitamente a modernidade ocidental, os muçulmanos de
Medina. Espero trazer esse segundo grupo de muçulmanos, os que estão mais próximos
de Meca do que de Medina, para um diálogo sobre o significado e a prática da
sua fé. Espero que eles sejam um dos principais públicos deste livro. Reconheço,
é claro, que esses muçulmanos provavelmente não dariam atenção a uma
conclamação pela reforma doutrinária vinda de alguém que eles julgam apóstata e
infiel. Mas talvez reconsiderem se eu puder persuadi-los a pensar em mim não
como uma apóstata, e sim como uma herege: alguém dentre um número crescente de
pessoas nascidas no islão que procura pensar, com uma postura crítica, a respeito
da fé em que fomos criados. É com esse terceiro grupo, do qual apenas uns poucos
deixaram de vez o islão, que hoje me identifico». In Ayaan Hirsi Ali, Herege,
tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora Schwarcz, Companhia das
Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.
Cortesia
de ESchwarcz/CLetras/JDACT