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Também há quem reclame a mesma herança para o lugar de Cegodim, pretensa degeneração,
desta feita não de remate da rainha, mas da desavergonhada confissão do rei: cego
vim! Contudo, é provável que não se encontre um só linguista que defenda a credibilidade
destes mitos, verdadeiramente, urbanos. Um último presume explicar a origem do
topónimo Pataias, por uma vez, sem culpas para Dinis. Iria a rainha de viagem
quando as rodas da carruagem se teriam partido. Descendo para o caminho e prosseguindo
pelo próprio pé, Isabel teria então ordenado às suas damas: à pata, aias!, linguajar
altamente improvável para uma mulher descrita como erudita e que dominava,
oralmente e por escrito, o português, o catalão, o castelhano e o latim.
O
infortúnio daquela relação entre rei e rainha estender-se-ia aos filhos. Dona Constança
morre com apenas 23 anos, depois de um casamento que também não terá sido especialmente
feliz com Fernando IV de Castela. Diz-se que Isabel, figura inspiradora de toda
a espécie de histórias, manterá, até ao fim da vida, contactos pós-morte com a
falecida filha. Quanto a Afonso, tornar-se-á a mais espinhosa das suas missões.
Naquele final da Idade Média, os senhores feudais não se vão entregar sem luta ao
poder dos reis. Inteligentemente, nobreza e clero escolhem para líder nem mais nem
menos do que o próprio herdeiro de Dinis. A partir de 1319, Afonso vai começar
a enfrentar no campo de batalha o pai, quanto este é já um velho rei quase sexagenário.
Antes, Dinis tivera já de se bater, pelas mesmas razões, contra o próprio irmão.
Por três vezes se defrontaram e por três vezes o rei venceu, até que, por fim, se
chegou a um acordo para a rendição do irmão e posterior exílio em Castela.
Com o
filho, o embate será ainda mais duro e contranatura. Afonso começa por abandonar
a corte para ir pedir à rainha de Castela apoio nas suas pretensões ao lugar de
mordomo-mor. O cargo assegurava o controlo administrativo do reino, pelo que, se
fosse Afonso a ocupá-lo, poderia travar a política centralizadora de Dinis. Contudo,
a ambição do príncipe também tinha origem num ciúme familiar: desejava ardentemente
afastar aquele que era então o mordomo-mor, Afonso Sanches, filho bastardo do
pai e, portanto, seu meio-irmão. À medida que se apercebe de que marido e filho
podem estar para se enfrentar de armas na mão, Isabel tenta demover Afonso das suas
pretensões, mas Dinis, julgando que a mulher está a proteger Afonso, desterra-a
para Alenquer. O caso inspiraria a ópera de Handel Dionisio, Re di Portogallo.
Com
o afastamento da mãe, a tensão entre pai e filho prossegue num perigoso
crescendo. Dinis consegue sitiar Afonso em Coimbra e prepara-se para avançar sobre
ele com forças muito superiores. Porém, no testemunho mais eloquente da sua personalidade,
Isabel desobedece abertamente ao marido e abandona Alenquer para ir demover o filho
de uma guerra onde o melhor a que poderia aspirar seria sair vivo de uma derrota
humilhante. Todavia, pai e filho eram gente igualmente inflamável, ao menos isso
os unia e, no ano seguinte, já estariam de volta à carga. No Campo de Loures, Alvalade,
a tragédia adiada parece agora inevitável: os exércitos de Dinis e Afonso marcham
já um contra o outro. Mas, no último momento, Isabel surge montada numa mula,
interpondo-se entre as frentes de guerra e obrigando-as a pararem. A rainha tinha
arriscado a própria vida, mas, depois daquele dia, o conflito entre o rei e o príncipe
começaria a esbater-se até terminar num acordo de paz definitivo. Quanto a Isabel,
consolidava entre os súbditos a imagem que haveria de a perpetuar na memória colectiva:
a de rainha da paz.
Dinis
não viveria muito mais. Morre em 1325, um ano depois do armistício com o filho.
Nos últimos dias de vida, teve sempre Isabel ao lado, a dedicada e devota mulher
que, ao menos na hora do testamento, soube respeitar e honrar: (…) A ella tenho eu por bem que seja a principal,
& a maioral testamenteira, porque som certo que fará por mim, & pella
minha alma todo aquelo que ella poder (...) Como era seu desejo, el-rei foi
então a enterrar no Mosteiro de Oh-ide-vê-las, e o filho sucedeu-lhe
no trono como Afonso IV Quanto a Isabel, vestiu o hábito de clarissa e viveu os
onze anos seguintes no Mosteiro de Santa Clara, que ela mesma mandara construir
com um paço anexo ao convento, por onde entrava e saía e a partir do qual continuaria
a administrar os seus bens e a fazer obras de misericórdia». In
Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras,
2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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