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e wikipedia
O corpo.
A igreja. O pecado
«(…)
A noção de intimidade no mundo dos homens entre os séculos XVI e XVIII se diferencia profundamente daquela que é a nossa
no início do século XXI. A vida
quotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar
nu ou ter reacções eróticas eram práticas que correspondiam a ritos
estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido. Regras, portanto,
regulavam condutas. Leis eram interiorizadas. E o sentimento de colectividade sobrepunha-se
ao de individualidade. Mas falar nesse assunto quando a América ainda era
portuguesa implica compreender o que se entendia por privacidade há quase
trezentos anos. Apenas em 1718 o
conceito fará a sua aparição. E foi o dicionarista jesuíta Raphael Bluteau
quem, pioneiramente, esclareceu: privado, uma pessoa que trata só de sua
pessoa, da sua família e de seus interesses domésticos. Mais tarde, em 1798, no seu Elucidário de
palavras e termos, frei Joaquim Santa Rosa Viterbo definia que o verbete privido,
palavra mais tarde substituída por privado, designava o que pertencia a
uma particular pessoa. Quase cem anos foram necessários para que privado
deixasse de significar o que fosse familiar e colectivo para se centrar no
pessoal. Mas como fazer tal passagem em terras de escravidão e de pobreza material,
onde, contrariamente à Europa ocidental, não havia muita separação entre
privado e público? Como, num lugar onde todos sabiam de tudo e de todos? Era
diferente. Aqui, muitas pessoas andavam seminuas: sobretudo índios e escravos.
As regras e os ritos vindos da Europa não se tinham consolidado entre índios e
africanos. Palavras como vergonha e pudor, recém-dicionarizadas
no século XVI, continuavam
ausentes dos vocabulários, nome que então se dava aos glossários, até
entre portugueses. Para os etimologistas, a palavra nasceu à época da chegada
dos lusitanos às nossas costas. Antes, pudenda designava os órgãos
sexuais, vergonhosos. Inicialmente associados à pudicícia, pudor e
castidade eram sinónimos. Os primeiros dicionários deram o sentido actual
ao termo, ligando-o à modéstia, decência e civilidade. Considerado natural nas
mulheres, o pudor permitia afirmar que uma mulher nua podia ser mais púdica do
que uma vestida. Isso, pois acreditava-se que, ao despir-se, ela se cobria com
as vestes da vergonha.
O
pudor que se definia nos dicionários não era um conceito espalhado na
sociedade. Enquanto Isabel de Castela, em 1504, morria de uma ferida que não quis mostrar aos médicos, recebendo
a extrema-unção sob os cobertores para não exibir nem os pés, muitos moradores da
América portuguesa vestiam-se apenas com um minúsculo pedaço de tecido.
Descobria-se, então, que existiam povos obedientes a diferentes noções de
pudor. Ora, tais noções foram pioneiras em esboçar a história do polimento das
condutas, do crescimento do espaço privado e dos auto-constrangimentos que a
modernidade foi trazendo. Daquilo que Michel Foucault chamou de cuidado de si;
uma esfera cada vez mais definida entre o público e o privado. Esfera capaz de
afastar, de forma progressiva e profunda, um do outro. E que conta a história
do peso da cultura sobre o mundo das sensações imediatas. Cultura que nos levou
da vida em grupo ou em família para o individualismo que é a marca do nosso
tempo.
1500. Pleno
desabrochar do Renascimento na Europa e chegada dos alfacinhas ao Brasil.
Em 1566, é dicionarizada na França, pela primeira vez, a palavra erótico.
Designava, então, o que tiver relação com o amor ou proceder dele. Na
pintura, o humanismo colocava o homem no centro do mundo, e não mais Deus,
descobrindo-se os corpos e o nu. Nu que, hoje, associamos ao erotismo. Mas era
ele, então, sinónimo de erotismo? Não. Isso significa que as palavras, os
conceitos e seus conteúdos mudam, no tempo e no espaço; o que hoje é erótico,
não o era para os nossos avós. Comecemos por um exemplo bastante conhecido. Ao
desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os recém-chegados portugueses
impressionaram-se com a beleza das nossas índias: pardas, bem dispostas, as suas
vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso
desvergonha alguma. A Pero Vaz Caminha não passaram despercebidas as moças
bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas.
Os corpos, segundo ele, limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais
ser. Os cânones da beleza europeia se transferiam para cá, no olhar guloso
dos primeiros colonizadores. Durante o Renascimento, graças à teoria neoplatónica,
amor e beleza caminhavam juntos. Vários autores, como Petrarca, trataram desse
tema para discutir a correspondência entre belo e bom, entre o visível e o
invisível. Não à toa, nossas indígenas eram consideradas, pelos cronistas
seiscentistas, criaturas inocentes. A sua nudez e despudor eram lidos numa
chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, a formosura à ideia de
pureza. Até as suas vergonhas depiladas remetiam a uma imagem sem
sensualidade. As estátuas e pinturas que revelavam mulheres nuas, o faziam sem
pêlos púbicos. A penugem cabeluda era o símbolo máximo do erotismo feminino. A
questão da sensualidade não estava posta aí». In Mary del Priore, Histórias
íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do
Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.
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