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«(…) Seguiu-se um momento de
silêncio enquanto eu acabava de a secar e lhe pentear o cabelo. Sheila estava
mais pensativa. A minha mamã não gostar tanto de mim, disse por fim. A sua voz era
concentrada, mas ao mesmo tempo, calma e directa. Era como se estivesse a falar
de uma das outras crianças da turma, de um trabalho escolar, ou até mesmo do
tempo. A minha mamã levar Jimmie e ir para a Califórnia. Jimmie ser o meu irmão
e ter quatro anos, mas ter apenas dois anos, quando a minha mamã partir. Seguiu-se
um hiato de alguns instantes e Sheila examinou de novo a cicatriz. No princípio,
a minha mamã levar Jimmie e eu, só que ficar farta de mim. Depois, abriu a porta
do carro e empurrar-me para fora e uma pedra cortar-me a perna neste sítio.
Aquelas primeiras semanas com
Sheila foram como uma viagem na montanha russa. Havia dias em que estávamos nas
nuvens. O espanto encantado com este novo mundo em que se via envolvida revelava
em Sheila uma personagem pequena e radiante. Ansiava por ser aceite no grupo e,
ao seu modo desajeitado, tentava desesperadamente agradar-nos, tanto a Anton
como a mim. Noutros dias, contudo, ia-se abaixo, por vezes em voo picado.
Apesar dos progressos que fizera logo desde o início, Sheila continuava a ser
capaz de ter comportamentos verdadeiramente arrepiantes. O mundo era um sítio
mau, na opinião de Sheila. Vivia segundo o princípio de agir contra os outros,
antes que estes agissem contra ela. A vingança, em particular, era lancinante.
Se alguém enganasse Sheila ou simplesmente a tratasse de uma forma arbitrária,
ela retribuía de uma maneira precisa e dolorosa. Numa ocasião, causou danos no
valor de centenas de dólares na sala de aula de outra professora como
retaliação por esta a ter repreendido no refeitório. O que nos salvou for o
horário dos autocarros ser tão complicado. Alguns meses antes de ter ingressado
na minha aula, o comportamento de Sheila fizera com que tivesse sido excluída
de dois autocarros escolares e o único que passou a estar disponível foi o
autocarro do liceu. Infelizmente, este só passava pelo campo de imigrantes duas
horas após o fim das nossas aulas. Assim, até esse momento, Sheila tinha de
ficar na escola comigo e com Anton. Fiquei horrorizada quando tomei conhecimento
do facto, porque essas duas horas após o termo das aulas estavam destinadas ao
meu trabalho de planeamento e preparação do dia seguinte, e não podia imaginar
como conseguiria dar conta do recado quando, ao mesmo tempo, tinha de olhar por
uma criança tão imprevisível como Sheila. No entanto, não havia outra
alternativa.
Inicialmente, deixava-a entretida
com os brinquedos da sala de aula, enquanto eu ficava sentada tentando fazer o
meu trabalho; porém, ao fim de quinze minutos sozinha, inevitavelmente, Sheila
vinha ter comigo e ficava de pé enquanto eu trabalhava. Fazia sempre muitas
perguntas. O que é isso? Para que é aquilo? Porque estás a fazer isso? Porque é
que isto é assim? O que fazes com essa coisa? Constantemente. Até que
compreendi que passávamos muito tempo a conversar. Por conseguinte, comecei a
fazer leituras com ela. Havia algo de constrangedor ao partilhar a leitura de
um livro com Sheila. Aconchegávamo-nos uma à outra no cantinho de leitura
enquanto me preparava para ler em voz alta, e ela ficava tão expectante com as
experiências narradas no livro que todo o seu corpo se retesava de entusiasmo.
O Ursinho Puf, O Pirata da Perna-de-Pau e Peter Pan revelavam uma magia mais
forte do que a Escrava do Amor. No entanto, entre todos os livros, foi o
Principezinho, de Saint-Exupéry, que conquistou o coração de Sheila. Adorava
aquele pequeno personagem divertido e admirável. Compreendia perfeitamente a
sua alteridade. Cheio de maturidade num dado momento, imaturo no momento
seguinte; ora profundo, ora carinhoso, mas sempre, sempre à margem, o principezinho
tinha um significado profundo para Sheila. Lemos o livro tantas vezes que
Sheila já era capaz de recitar de cor alguns excertos. Quando não estávamos a ler,
ficávamos simplesmente a conversar. Sheila debruçava-se sobre a mesa e observava-me
a trabalhar ou fazíamos uma pausa em determinado momento da história para lhe explicar
algum conceito; e a partir daí a conversa derivava, nunca voltando totalmente à
história que estava a ser narrada. Aos poucos ia sabendo mais coisas sobre a vida
de Sheila no campo de imigrantes, e sobre o seu pai e as amantes com quem muitas
vezes regressava a casa a altas horas da noite. Sheila contou-me que lhe escondia
as garrafas de cerveja atrás do sofá para o impedir de beber demais, e que se levantava
muitas vezes, após o pai adormecer, para apagar os cigarros que ele deixava acesos.
Fiquei a saber mais sobre o irmão, a mãe e o seu abandono. E fiquei a conhecer a
outra escola de Sheila e os seus outros professores, o que fazia para ocupar os
dias e as noites, quando não estava connosco. Em contrapartida, eu abria-lhe o meu
mundo e dava-lhe a esperança de que também viesse a ser o dela.
Aquelas
duas horas eram uma dádiva de Deus. Durante todo o seu curto tempo de vida, Sheila
tinha sido ignorada, negligenciada e, muitas vezes, ostensivamente rejeitada. Tinha
muito pouca experiência vivida com adultos responsáveis e carinhosos e em ambientes
estáveis; e naqueles momentos, ao descobrir a sua existência, Sheila ansiava por
essa experiência. A azáfama da sala de aula durante o dia, pelos cuidados que implicava,
não me permitia dedicar a atenção exclusiva de que Sheila necessitava para
recuperar tudo o que lhe faltara. Era no delicado silêncio da tarde, quando estávamos
a sós, que ela ousava deixar para trás os seus velhos comportamentos e experimentava
alguns dos meus». In Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando
Antunes, Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.
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