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Moçambique:
essa imensa varanda sobre o Índico... In Eduardo Lourenço, 1995
«(…)
Lembrei o caso do camaleão. Todos sabem a lenda: Deus enviou o camaleão como
mensageiro da eternidade. O bicho demorou-se a entregar aos homens o segredo da
vida eterna. Demorou-se tanto que deu tempo a que Deus, entretanto, se
arrependesse e enviasse um outro mensageiro com o recado contrário. Pois eu sou
um mensageiro às avessas: levo recado dos homens para os deuses. Me estou
demorando com a mensagem. Quando chegar ao lugar dos divinos já eles terão
recebido a contrapalavra de outrem.
Certo
era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser
evitada, custasse os olhos e a cara. Que poderia eu fazer, fantasma sem lei nem
respeito? Ainda pensei reaparecer no meu corpo de quando eu era vivo, moço e
felizão. Me retroverteria pelo umbigo e surgiria, do outro lado, fantasma
palpável, com voz entre os mortais. Mas um xipoco que reocupa o seu antigo
corpo arrisca perigos muito mortais: tocar ou ser tocado basta para
descambalhotar corações e semear fatalidades. Consultei o pangolim, meu animal
de estimação. Há alguém que desconheça os poderes deste bicho de escamas, o
nosso halakavuma? Pois este mamífero mora com os falecidos. Desce dos céus
aquando das chuvadas. Tomba na terra para entregar novidades ao mundo, as
proveniências do porvir. Eu tenho um pangolim comigo, como em vida tive um cão.
Ele se enrosca a meus pés e faço-lhe uso como almofada. Perguntei ao meu halakavuma
o que devia fazer. Não quer ser herói? Mas herói de quê, amado por quem? Agora,
que o país era uma machamba de ruínas, me chamavam a mim, pequenito
carpinteiro!? O pangolim se intrigou: não lhe apetece ficar vivo, outra vez? Não.
Como está a minha terra, não me apetece. O pangolim rodou sobre si próprio.
Perseguia a extremidade do corpo ou afinava a voz para que eu lhe entendesse?
Porque não é com qualquer que o bicho fala. Ergueu-se sobre as patas traseiras,
nesse jeito de gente que tremexia comigo. Apontou o pátio da fortaleza e disse:
veja à sua volta, Ermelindo. Mesmo no meio destes destroços nasceram flores
silvestres. Não quero regressar para lá. É que aquele será, para sempre, o teu
jardim: entre pedra ferida e flor selvagem.
Me
irritavam aquelas vagueações do escamudo. Lhe lembrei que eu queria era
conselho, uma saída. O halakavuma ganhou as gravidades e disse: você,
Ermelindo, você deve remorrer. Voltar a falecer? Se nem foi fácil deixar a vida
da primeira vez! Seguindo a tradição de minha família não deveria ser sequer
tarefa fazível. Meu avô, por exemplo, durou infinidades. Com certeza, não
morreu ainda. O velho deixava a perna de fora do corpo, dormia junto de
perigosas folhagens. Oferecia-se, desse modo, à mordedura das cobras. O veneno,
em doses, nos dá mais vivência. Falava assim. E parecia a vida lhe dava razão:
cada vez ele ficava mais cheio de feitio e forma. O halakavuma se parecia com
meu avô, teimoso como um pêndulo. O bicho insistia-me: escolha um que esteja
próximo para acabar. O lugar mais seguro não é no ninho da cobra-mamba? Eu
devia emigrar em corpo que estivesse mais perto de morrer. Apanhar boleia dessa
outra morte e dissolver-me nessa findação. Não parecia difícil. No asilo não faltaria
quem estivesse para morrer. Quer dizer que eu vou ter que fantasmear-me por um
alguém? Você irá exercer-se como um xipoco. Deixe-me pensar, disse eu. No
fundo, a decisão já tinha sido tomada. Eu fingia apenas ser dono da minha
vontade. Nessa mesma noite, eu estava transitando para xipoco. Pelas outras
palavras, me transformava num passa-noite, viajando em aparência de um outro
alguém. Caso reocupasse meu próprio corpo eu só seria visível do lado da
frente. Visto por detrás não passaria de oco de buraco. Um vazio desocupado.
Mas eu iria residir em corpo alheio. Da prisão da cova eu transitava para a
prisão do corpo. Eu estava interdito de tocar a vida, receber directamente o
sopro dos ventos. De meu recanto eu veria o mundo translucidar, ilúcido. Minha
única vantagem seria o tempo. Para os mortos, o tempo está pisando nas pegadas
da véspera. Para eles nunca há surpresa. No princípio, ainda depositei dúvida:
esse hala-kavuma dizia a verdade? Ou inventava, de tanto estar longe do mundo?
Há anos que ele não descia ao solo, suas unhas já cresciam a redondear umas
tantas voltas. Se mesmo as patas dele tinham saudade do chão, por que motivo
sua cabeça não fantasiava loucuras? Mas, depois, eu me fui deixando ocupar pela
antecipação da viagem ao mundo dos vivos.
Me
enchi tanto desta vontade que até sonhei sem chuva nem noite. O que sonhei?
Sonhei que me enterravam devidamente, como mandam nossas crenças. Eu falecia
sentado, queixo na varanda dos joelhos. Descia à terra nessa posição, meu corpo
assentava sobre areia que haviam retirado de um morro de muchém. Areia viva,
povoada de andanças. Depois me deitavam terra com suavidade de quem veste um
filho. Não usavam pás. Apenas serviço de mãos. Paravam quando a areia me
chegava aos olhos. Então, espetavam à minha volta paus de acácias. Tudo em
aptidão de ser flor. E para convocar a chuva me cobriam de terra molhada. Assim
eu me aprendia: um vivo pisa o chão, um morto é pisado pelo chão. E sonhei
ainda mais: após a minha morte, todas as mulheres do mundo dormiam ao relento.
Não era apenas a viúva que estava interdita a abrigar-se, como é hábito da
nossa crença. Não. Era como se todas as mulheres tivessem, em mim, perdido o
esposo. Todas estavam sujas por minha morte. O luto se estendia por todas as
aldeias como um cacimbo espesso. As lamparinas iluminavam o milho, mãos
trémulas passavam com o cadinho do fogo entre os espigueirais. Limpavam-se os
campos dos maus-olhados. No dia seguinte, mal acordei me pus a abanar o
halakavuma. Queria saber quem era a pessoa que ia ocupar. É um que está para
vir. Um? Qual? É um de fora. Vai chegar amanhã. Depois, acrescentou: foi pena não
me ter lembrado antes. Uma semana antes e tudo estaria já resolvido. Há uns
poucochinhos dias mataram um grande, lá no asilo. Que grande? O director do
asilo. Foi morto ao tiro. Por motivo desse assassinato vinha da capital um
agente da polícia. Eu que me instalasse no corpo desse inspector e seria certo
que morreria. Você vai entrar nesse polícia. Deixe o resto por minhas contas. Quanto
tempo vou ficar lá, na vida? Seis dias. É o tempo do polícia ser morto». In
Mia Couto, A Varanda do Frangipani, 1996, Editorial Caminho, colecção Outras
Margens, 2000, ISBN 978-972-211-050-1.
Cortesia
de ECaminho/JDACT