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Dera um salto para a varanda, fugindo de um buraco que se abrira aos seus pés,
estilhaçando as madeiras do soalho. Agarrara-se ao varandim, cheio de medo. Era
como se toda a sua rua estivesse a cair, os prédios tombavam uns atrás dos
outros. Estarrecido, ficou assim uns minutos, não se lembrava quantos. Uma
nuvem de pó emergia, envolvendo a cidade. Por momentos, o barulho diminui, mas
logo recomeçou, num novo e ainda mais violento abalo. Em pânico, e apesar de
agarrado ao varandim, o capitão inglês sentira que nada podia fazer contra
aquele monumental sismo. Estava nas mãos de um deus furioso, que o iria
destruir, a ele e à cidade de Lisboa inteira. E então o seu prédio caiu também,
com Hugh Gold agarrado ao varandim.
Sendo
inglês e protestante, o capitão Hugh Gold era naturalmente bastante sarcástico
com o que chamava a beatice tonta e acéfala dos portugueses. Por diversas vezes
o ouvi, cáustico e cínico, criticar a submissão aos ídolos religiosos e aos
frades. Contudo, e apesar de haver um fundo de verdade naquelas afirmações,
infelizmente para a cidade de Lisboa e para muitos dos seus habitantes, entre
os quais a mulher de Gold, o grande terramoto ocorreu num dia religioso e, pior
ainda, à hora da missa. Era sábado, feriado, Dia de Todos-os-Santos, e quando a
terra tremeu eram nove e meia da manhã e milhares de portugueses rezavam nas
igrejas. Muitos encontraram a morte lá dentro. Talvez para os crentes morrer
próximo de Deus até fosse belo, mas para mim era apenas irónico e triste. Também
houve quem sobrevivesse, como foi o caso do rapaz. Vou tratá-lo assim ao longo desta
história, pois só soube o nome dele quase no fim daqueles dias, e por isso
sempre que falávamos com ele, eu ou alguma outra pessoa do nosso estranho grupo,
o inglês, irmã Margarida, o meu companheiro árabe, a escrava, chamávamos-lhe
simplesmente rapaz. Ó rapaz, onde vais? Ó rapaz, és tão teimoso! O rapaz por
onde anda, fugiu outra vez? Nunca deixei de estranhar a sua presença. Não sei
explicar porquê, mas alguma coisa nele me causava não só curiosidade, mas
também apreensão. Além disso, havia no seu comportamento uma hostilidade para
comigo que nunca desapareceu. Antipático, era sempre agreste e arisco quando me
dirigia a ele.
Por
isso, o que se passou com o rapaz na Igreja de São Vicente de Fora, no dia em
que a terra tremeu, não me foi contado por ele, que raramente me dirigia a
palavra. Foi a irmã Margarida quem me contou a história do seu sofrimento. Foi
através desse relato que tomei consciência da tragédia que vivera, e a partir
desse momento compreendi-o melhor e à sua determinação em procurar a irmã. Naquela
manhã, antes do terramoto, o rapaz saiu da Igreja de São Vicente de Fora a
pensar na sua irmã gémea. Estava preocupado, pois nem ela nem o padrasto tinham
ainda chegado para a missa e já havia passado quase uma hora desde que ele
saíra de casa com a mãe. Talvez viessem a caminho, próximo da Sé, ou já na
subida para o Castelo de São Jorge, e ele se cruzasse com eles à ida para
baixo. Ou talvez ainda não tivessem saído de casa... O rapaz não gostava de deixar
a irmã sozinha com o padrasto. Ela tinha doze anos, já era uma rapariga com
sinais de mulher, e via que o padrasto a comia com os olhos. Para trás, ficava
uma igreja repleta de gente, de comerciantes e das suas famílias, que aproveitavam
para pôr as conversas em dia. Ouvia-se o riso das comadres, as crianças a brincarem
à apanhada, enquanto os cavalheiros fumavam, observando-se uns aos outros e às suas
fatiotas. Todos se haviam vestido com propriedade e vaidade, pois aquele era um
dia feriado no reino, um dia de festa.
Meia
hora passara antes de a missa começar, e a irmã e o padrasto não chegavam. O
rapaz sabia que o homem estava cansado, pois na véspera, sexta-feira, haviam
ido a Belas os dois, numa caleche, e enquanto o rapaz adormecera no regresso a
Lisboa o padrasto não pregara olho. Por isso, deixara-se na sorna, enquanto a
mãe se aperaltava para a missa. A irmã gémea alarmara-se quando a mãe lhe
ordenara que ficasse para trás e aguardasse pelo padrasto. O rapaz acalmara-a.
Sugerira-lhe que, se ele se tornasse desagradável, fugisse para a rua e
corresse na direcção da igreja. Gordo como era nunca a conseguiria apanhar.
Riram os dois, e o rapaz acrescentara que, além disso, o cão ficaria com ela, o
cão negro que só aceitava ordens dos gémeos, pois haviam sido eles que o tinham
descoberto na noite da cidade, e eram eles que o alimentavam. Contudo, ao sair
para a rua com a mãe, o rapaz não vira o cão. Todas as manhãs, costumava esperar
a comida matinal, sereno e calmo, deitado à soleira da porta. Naquela manhã não
estava, facto que o rapaz considerou mais um mau pressentimento. Já era o
terceiro. Na véspera, em Belas, uma fonte jorrara água com enxofre, ao final da
tarde, como se fosse a terra a vomitar a sua última refeição. Depois, durante a
madrugada, não se ouvira o ladrar dos cães vadios da cidade. Era como se todos
eles se tivessem posto de acordo na ideia de ficarem mudos em simultâneo. O que
era invulgar, pois os cães de Lisboa eram muitos e passavam as noites a uivar, percorrendo
as ruas à procura de restos de comida. Quando não viu o cão à saída de casa, e
com a tendência natural que todas as pessoas têm para pensar apenas no pequeno
mundo que os rodeia, o rapaz temeu que algo de mau fosse acontecer a alguém da
sua família naquele dia, e a irmã era a sua principal preocupação... Assim,
meia hora depois de terem entrado na igreja, o rapaz foi ter com a mãe e
anunciou-lhe que ia voltar a casa. Não vais não, agora a missa está quase a
começar..., ripostou a mãe, ordenando-lhe que se sentasse num dos bancos
corridos da igreja. Senta-te aí quietinho que eu vou já ter contigo. E guarda
mais dois lugarzinhos. Não, mãe, disse o rapaz. Vou voltar a casa. A mãe
observou-o, ligeiramente incomodada. Era um rapaz teimoso e obstinado, quando
metia uma coisa na cabeça. Suspirou: vem cá, meu filhinho. O rapaz aproximou-se
dela». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos
os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina
do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.
Cortesia
de Casa das Letras/JDACT