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«(…)
Muito obrigado. Não vale a pena. Era só para ver uma coisa..., e em pontas de
pés saímos dali direitos a um alfarrabista que sim senhor, meus senhores,
tinha a História de Portugal de Oliveira Martins, em dois volumes, décima
primeira edição, 1927.
Embora
descobríssemos logo a seguir que a História se estudava à luz de concepções que
pouco tinham a ver com as de Oliveira Martins, o qual, para nós, cometera o
pecado mortal de ignorar Marx, seu contemporâneo. Mesmo assim, que inesquecível
leitura! Aquele retrato de Portugal parecia-nos mais conforme do que as
hagiografias que nos tinham obrigado a aceitar e, com o sentimento de que
fazíamos obra revolucionária, copiávamos frases que, secretamente,
distribuíamos aos mais novos.
Nos
séculos XII e XIII Portugal é um certo território, propriedade dum certo
príncipe: donde vem?, quem é?, pouco importa. O conde Henrique era francês.
Assim, a época da primeira dinastia desmente por todos os lados, e de todas as
formas, a ideia duma raça, possuindo, dum modo mais ou menos definido, a
consciência da sua existência colectiva. Quem era Afonso Henriques, o primeiro
rei de Portugal? Era audaz, temerário até, pessoalmente bravo, qualidades nem
tão comuns no tempo, como a muitos acaso pareça (...) mas era seco, astuto,
friamente ambicioso, sem quimeras nem ilusões. Submisso e humilde quando se
achava vencido, subscrevia todas as condições, aceitava todas as durezas; para
logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os tratados, com uma franqueza
ingénua, uma simplicidade natural, que chegavam a espantar a própria Idade
Média.
De Pedro,
o Cru, já antes citado, alargava a biografia horrorosa: (...) tinha a paixão
da justiça: era nele uma mania, como no seu avô fora a guerra: não prescindia
de julgar todos os delitos. Os criminosos vinham à corte desde os remotos
confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se
pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e
dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão
dos réus. Nunca abandonava o açoute: enrolado à cinta em viagem, tomava dele, e
por suas mãos castigava os facínoras que no caminho lhe traziam.
Valendo-se
duma citação de Alexandre Herculano, Oliveira Martins despachava assim o retrato
de três reis da primeira dinastia: o rei Dinis foi um avaro, Afonso IV um homem
de juízo, Pedro I um doido com intervalos lúcidos de justiça e economia. Dali passava
aos Descobrimentos. Ora nós, jovens, não tínhamos sido insensíveis ao trovejar da
epopeia de Camões e sem excepção, sabíamos de cor os primeiros versos de Os Lusíadas.
Além disso, o hino nacional, que cantávamos pelo menos todos os sábados de manhã,
era igualmente belicoso. Pense cada qual o que quiser, não deixa de ser realidade
que, sobre esse período particular da História, nos encontrávamos razoavelmente
endoutrinados. As façanhas dos nossos marinheiros e soldados a caminho do Oriente
eram infinitamente mais excitantes do que as lamechices de Texas Jack, Jesse James
e os restantes fora-da-lei do faroeste.
Ora o
historiador, com um simples parágrafo, limpou-nos a cabeça das teias do
heroísmo e, pelo menos no que me diz respeito, vacinou-me contra as versões oficiais
passadas, presentes e futuras dos acontecimentos históricos: navegadores (...) a
maneira como nos aventurámos ao mar retrata ainda a nossa fisionomia colectiva:
fomos prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em ilha,
no oceano, caminhando passo à passo. avançando sempre, tenazes, mas jamais temerários».
In
J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa,
2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.
Cortesia de
QuetzalE/JDACT