sexta-feira, 14 de abril de 2017

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Não! A palavra saiu-lhe como um suspiro de agonia. Não, não o teria feito. Não podia tê-lo feito. Com cuidado, apalpou as nódoas negras que lhe marcavam os braços»

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«(…) Deixe-me acompanhá-la a casa, Jess! Parecia que estava a ouvir a voz dele, ressoando-lhe nos ouvidos. Depois, nada. A partir dali, as suas memórias tinham-se evaporado. O apartamento onde vivia ficava a meia hora a pé do colégio, mas ela não se lembrava de ter atravessado a estrada principal, com o trânsito ainda abundante muito depois da meia-noite; nem de ter descido a rua agitada, onde metade das lojas continuava de portas abertas às noites quentes de Julho. Não se lembrava de ter virado para baixo na praça em socalcos, com os seus minúsculos e preciosos oásis de árvores e arbustos poeirentos, ao centro, cercados de grades com pontas de ferro e montes de lixo no interior. Nem tão-pouco se lembrava de ter aberto a porta do prédio, ou de ter subido as escadas, destrancado a fechadura da porta do apartamento, entrado e, tudo indicava, oferecido ao seu acompanhante mais uma bebida. Não, Ashley não. Por favor, que não fosse Ashley. Só podia ter sido Ashley. As pessoas tinham-na avisado. Tinham-lhe dito que ele era violento. Que se tornara demasiado íntimo, demasiado físico ao pé dela. Mas Jess ignorara-as. Ela é que sabia. Ela vira o potencial de Ashley e nada se atravessaria no caminho da sua ambição por ele. Se fora Ashley, seria ela a culpada? Tê-lo-ia motivado a fazer amor com ela?
Não! A palavra saiu-lhe como um suspiro de agonia. Não, não o teria feito. Não podia tê-lo feito. Com cuidado, apalpou as nódoas negras que lhe marcavam os braços. A pessoa que lhe fizera aquilo obrigara-a e dominara-a. Não fora amor, mas violação. Ficou muito tempo no duche, sabendo que não deveria fazê-lo; sabendo que, se fora violada, deveria chamar a polícia, preservar alguma prova escondida no interior do corpo, mas consciente, ao mesmo tempo, enquanto se esfregava até ficar em carne viva, de que nunca teria coragem de enfrentar o horror do processo judiciário. Uma das suas alunas vira-se obrigada a fazê-lo, ela acompanhara a rapariga à sala fria e impessoal onde a adolescente fora interrogada, examinada e, por fim, desacreditada. A memória fê-la estremecer. Nunca se submeteria a uma coisa daquelas. Nunca. Devagar, começara a senti-la, uma fúria ardendo a fogo lento. Por muito álcool que tivesse sido forçada a beber, mesmo que a tivessem drogado para ceder e esquecer, descobriria o responsável e fá-lo-ia pagar. Sentada à beira do sofá, encolhida no roupão de banho, voltou a sentir-se trémula ao percorrer mentalmente, uma e outra vez, os factos de que conseguia lembrar-se. Teria convidado Ash a entrar? Era verdade que dançara com ele várias vezes. Tomara mais uma bebida. E, depois, outra. Quem lhas teria dado? Não conseguia lembrar-se. Era óbvio que bebera de mais, mas ter-lhe-iam acrescentado alguma coisa a essas bebidas?
Teria ela, no estado em que se encontrava, aceitado fazer sexo? Teria gostado? Sentia as mãos húmidas e frias. Uma vertigem de náusea crescia-lhe, algures, abaixo das costelas. A sala começara, de novo, a andar à roda. De súbito, deu-se conta do som de passos subindo as escadas para o seu patamar. Levantando-se com esforço, correu para a porta da frente, fechou o ferrolho com violência e enfiou a corrente na ranhura. Depois, devagar, tremendo com um terror que nunca experimentara antes, deixou-se escorregar para o chão, lágrimas correndo-lhe pelas faces ao encostar-se à parede, apertando o roupão branco à volta do corpo. Lá fora, os passos subiram a escada num ápice, passando pela sua porta sem parar, e o som esmoreceu algures nos andares de cima. Jess adormeceu ali mesmo, no chão, de costas apoiadas na parede. Quando acordou, foi ao som de alguém a bater à porta. A maçaneta rodou. Sustendo a respiração, olhou para cima, para esta, com um nó no estômago. Jess, estás aí? Era a voz de Will. Jess, estás bem? Escuta, queria pedir-te desculpa pelo que aconteceu ontem à noite. Comportei-me como um idiota. Perdoa-me. Seguiu-se uma longa pausa. Depois, um profundo suspiro. Jess, estás aí? O que se passa? Mais uma pausa. Seguida de uma exclamação zangada. Vejo-te na segunda, para esclarecermos isto, está bem, Jess? Ouviu-o, então, afastar-se da porta, ouviu os passos dele a correr pela escada abaixo e a porta da rua a fechar-se com estrondo. Por fim, silêncio». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT