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«(…)
Deixe-me acompanhá-la a casa, Jess! Parecia que estava a ouvir a voz dele,
ressoando-lhe nos ouvidos. Depois, nada. A partir dali, as suas memórias
tinham-se evaporado. O apartamento onde vivia ficava a meia hora a pé do
colégio, mas ela não se lembrava de ter atravessado a estrada principal, com o
trânsito ainda abundante muito depois da meia-noite; nem de ter descido a rua
agitada, onde metade das lojas continuava de portas abertas às noites quentes
de Julho. Não se lembrava de ter virado para baixo na praça em socalcos, com os
seus minúsculos e preciosos oásis de árvores e arbustos poeirentos, ao centro,
cercados de grades com pontas de ferro e montes de lixo no interior. Nem
tão-pouco se lembrava de ter aberto a porta do prédio, ou de ter subido as
escadas, destrancado a fechadura da porta do apartamento, entrado e, tudo
indicava, oferecido ao seu acompanhante mais uma bebida. Não, Ashley não. Por
favor, que não fosse Ashley. Só podia ter sido Ashley. As pessoas tinham-na
avisado. Tinham-lhe dito que ele era violento. Que se tornara demasiado íntimo,
demasiado físico ao pé dela. Mas Jess ignorara-as. Ela é que sabia. Ela vira o
potencial de Ashley e nada se atravessaria no caminho da sua ambição por ele. Se
fora Ashley, seria ela a culpada? Tê-lo-ia motivado a fazer amor com ela?
Não!
A palavra saiu-lhe como um suspiro de agonia. Não, não o teria feito. Não podia
tê-lo feito. Com cuidado, apalpou as nódoas negras que lhe marcavam os braços.
A pessoa que lhe fizera aquilo obrigara-a e dominara-a. Não fora amor, mas
violação. Ficou muito tempo no duche, sabendo que não deveria fazê-lo; sabendo
que, se fora violada, deveria chamar a polícia, preservar alguma prova
escondida no interior do corpo, mas consciente, ao mesmo tempo, enquanto se
esfregava até ficar em carne viva, de que nunca teria coragem de enfrentar o
horror do processo judiciário. Uma das suas alunas vira-se obrigada a fazê-lo, ela
acompanhara a rapariga à sala fria e impessoal onde a adolescente fora
interrogada, examinada e, por fim, desacreditada. A memória fê-la estremecer.
Nunca se submeteria a uma coisa daquelas. Nunca. Devagar, começara a senti-la,
uma fúria ardendo a fogo lento. Por muito álcool que tivesse sido forçada a
beber, mesmo que a tivessem drogado para ceder e esquecer, descobriria o
responsável e fá-lo-ia pagar. Sentada à beira do sofá, encolhida no roupão de
banho, voltou a sentir-se trémula ao percorrer mentalmente, uma e outra vez, os
factos de que conseguia lembrar-se. Teria convidado Ash a entrar? Era verdade que
dançara com ele várias vezes. Tomara mais uma bebida. E, depois, outra. Quem lhas
teria dado? Não conseguia lembrar-se. Era óbvio que bebera de mais, mas ter-lhe-iam
acrescentado alguma coisa a essas bebidas?
Teria
ela, no estado em que se encontrava, aceitado fazer sexo? Teria gostado? Sentia
as mãos húmidas e frias. Uma vertigem de náusea crescia-lhe, algures, abaixo das
costelas. A sala começara, de novo, a andar à roda. De súbito, deu-se conta do
som de passos subindo as escadas para o seu patamar. Levantando-se com esforço,
correu para a porta da frente, fechou o ferrolho com violência e enfiou a corrente
na ranhura. Depois, devagar, tremendo com um terror que nunca experimentara antes,
deixou-se escorregar para o chão, lágrimas correndo-lhe pelas faces ao encostar-se
à parede, apertando o roupão branco à volta do corpo. Lá fora, os passos subiram
a escada num ápice, passando pela sua porta sem parar, e o som esmoreceu
algures nos andares de cima. Jess adormeceu ali mesmo, no chão, de costas apoiadas
na parede. Quando acordou, foi ao som de alguém a bater à porta. A maçaneta rodou.
Sustendo a respiração, olhou para cima, para esta, com um nó no estômago. Jess,
estás aí? Era a voz de Will. Jess, estás bem? Escuta, queria pedir-te desculpa pelo
que aconteceu ontem à noite. Comportei-me como um idiota. Perdoa-me. Seguiu-se uma
longa pausa. Depois, um profundo suspiro. Jess, estás aí? O que se passa? Mais
uma pausa. Seguida de uma exclamação zangada. Vejo-te na segunda, para esclarecermos
isto, está bem, Jess? Ouviu-o, então, afastar-se da porta, ouviu os passos dele
a correr pela escada abaixo e a porta da rua a fechar-se com estrondo. Por fim,
silêncio». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina
Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN
978-989-657-113-9.
Cortesia
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