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de wikipedia e jdact
«Na
linguagem da bibliografia de História Moderna, algumas práticas e costumes
sexuais relacionados ao corpo são descritas como libertinagem, erotismo e pornografia,
sendo frequentemente usadas como sinónimas e sem diferenciar os significados
desses conceitos. Esse hábito resulta em dois problemas. Primeiro, compõe-se
diferentes tipos de estudos históricos, como a História da Pornografia,
História da Literatura Erótica ou História da Libertinagem, sem, às vezes,
definir a especificidade de seus objectos. Em segundo lugar, refere-se ao
entendimento de áreas separadas a partir de modelos de continuidade dos
processos históricos. Contrariando essa ideia, este artigo examina alguns usos
dessas palavras feitos por franceses na Idade Moderna e demonstra como seus
sentidos foram construídos em cada acto comunicativo. A conclusão é que a
história do corpo deve ser vista como descontínua e atravessada por constantes
modificações e conflitos».
«Em
1902 foi publicado na França o romance La vénus à la fourrure, do escritor austríaco Leopold Masoch.
Essa narrativa, publicada originalmente em 1870, fazia parte dos volumes de Legs de Cain, que pretendiam resumir
a herança de crimes e de sofrimentos suportados pela humanidade. A crueldade,
nesse texto, funciona como uma imagem da Natureza, onde Caim descobre seu
próprio destino. Assim, de Caim ao Cristo há um mesmo signo, conduzindo o Homem
à cruz. Apesar da complexidade do texto, o crítico francês Benzon assinala a beleza
incomparável das descrições, o estudo pulsante e fino sobre as leis do carácter,
o sentimento profundo da natureza, (...) uma sinceridade de impressões que nos
faz crer voluntariamente no que diz o autor. As referências de anátema em nome
dos princípios do cristianismo e os elogios feitos pelos filósofos, em virtude
da suposta filiação do texto a Schopenhauer e a Darwin, priorizam a trama dos
conceitos. No entanto, para Benzon, Sacher-Masoch enfatiza as imagens, tal como
a da estátua instalada num pátio residencial, iluminada superficialmente por
luzes avermelhadas reflectidas de um fogo que lhe colore palidamente o rosto.
Esquecer isso conduz à perda dessa sublime criatura de corpo marmóreo, vestida
com uma grande pele.
Esquece-se
do diálogo de Séverin com a deusa, na busca humana para compreender os motivos
de Vénus usar a pele, já que não faz verdadeiramente frio. Apagam-se, também,
dois mil anos de história, que separam a cultura grega de deuses que riem dessa
cultura cristã do Norte, onde o mundo é habitado por demónios. Quase não se
ouve, por fim, a resposta e pedido da deusa para que se deixe o mundo pagão repousar
sob as lavas e escombros, já que, junto aos cristãos, nós, afirma a deusa,
morremos de frio. Não bastasse a reclamação dessa Vénus vestida com peles, a
tradução do texto para o francês, feita por Raphael Ledos Beaufort, em 1902, apresentava
algumas incorrecções, possivelmente tornando mais fraca a voz e a queixa da
deusa, num reforço daquilo que, supomos, o espírito vitoriano, ainda reinante
no início do século XX, foi capaz de censurar.
Mesmo
que não se possa acusar a nossa cultura de calar-se diante do corpo, de suas
impurezas e sua sexualidade, as práticas que se relacionam a isso emergem em vocabulário
e enunciações domesticados, num indício de um aprofundamento do que chamamos
civilização. A escrita da história também não escapou a esse processo
civilizador. Segundo Porter (1983), a história do corpo tem sido negligenciada
em virtude dos elementos clássicos e dos ditames judaico-cristãos da cultura ocidental,
que, por razões e caminhos distintos, separaram corpo e alma e deram primazia
ao pensamento. O corpo tornou-se o lugar da corrupção. Esse cenário sofreu, entretanto,
alguma mudança na segunda metade do século XX. Em virtude das mudanças sociais
advindas dos movimentos de direitos civis e igualdade de géneros, bem como
pelas mudanças inerentes ao campo disciplinar, abriram-se novas perspectivas
para pensar a escrita historiográfica. A incorporação dos sentimentos e sensibilidades
como objectos da história significou em alguma medida a composição de estudos
sobre as representações, tal como já se fazia com o trabalho ou o poder. O risco
que se evidenciou foi o do distanciamento entre o estudo das experiências
concretas vividas pela sociedade e aqueles relacionados às formas de pensamento
e expressão das sensibilidades.
Embora
não se deva reduzir a história social à história dos conceitos, há uma relação
entre os dois campos. As transformações vivenciadas realmente devem ser
percebidas a partir da forma como elas são enunciadas socialmente. A
experiência da linguagem e dos testemunhos também não é suficiente, embora essencial,
para afirmações conclusivas sobre certos aspectos da realidade. Assim,
independentemente da maneira como é denominado no campo historiográfico o
estudo do pensamento, da sensibilidade, do corpo etc., cabe ressaltar a
interdependência desses estudos com as relações ditas concretas». In Daniel
W. Ferreira, Erotismo, Libertinagem, Revista de História da Historiografia, Nº
3, 2009, Nº 125, ISSN 1983-9928.
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