segunda-feira, 17 de abril de 2017

Erotismo. Libertinagem. Daniel W Ferreira. «Esquece-se do diálogo de Séverin com a deusa, na busca humana para compreender os motivos de Vénus usar a pele, já que não faz verdadeiramente frio»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Na linguagem da bibliografia de História Moderna, algumas práticas e costumes sexuais relacionados ao corpo são descritas como libertinagem, erotismo e pornografia, sendo frequentemente usadas como sinónimas e sem diferenciar os significados desses conceitos. Esse hábito resulta em dois problemas. Primeiro, compõe-se diferentes tipos de estudos históricos, como a História da Pornografia, História da Literatura Erótica ou História da Libertinagem, sem, às vezes, definir a especificidade de seus objectos. Em segundo lugar, refere-se ao entendimento de áreas separadas a partir de modelos de continuidade dos processos históricos. Contrariando essa ideia, este artigo examina alguns usos dessas palavras feitos por franceses na Idade Moderna e demonstra como seus sentidos foram construídos em cada acto comunicativo. A conclusão é que a história do corpo deve ser vista como descontínua e atravessada por constantes modificações e conflitos».

«Em 1902 foi publicado na França o romance La vénus à la fourrure, do escritor austríaco Leopold Masoch. Essa narrativa, publicada originalmente em 1870, fazia parte dos volumes de Legs de Cain, que pretendiam resumir a herança de crimes e de sofrimentos suportados pela humanidade. A crueldade, nesse texto, funciona como uma imagem da Natureza, onde Caim descobre seu próprio destino. Assim, de Caim ao Cristo há um mesmo signo, conduzindo o Homem à cruz. Apesar da complexidade do texto, o crítico francês Benzon assinala a beleza incomparável das descrições, o estudo pulsante e fino sobre as leis do carácter, o sentimento profundo da natureza, (...) uma sinceridade de impressões que nos faz crer voluntariamente no que diz o autor. As referências de anátema em nome dos princípios do cristianismo e os elogios feitos pelos filósofos, em virtude da suposta filiação do texto a Schopenhauer e a Darwin, priorizam a trama dos conceitos. No entanto, para Benzon, Sacher-Masoch enfatiza as imagens, tal como a da estátua instalada num pátio residencial, iluminada superficialmente por luzes avermelhadas reflectidas de um fogo que lhe colore palidamente o rosto. Esquecer isso conduz à perda dessa sublime criatura de corpo marmóreo, vestida com uma grande pele.
Esquece-se do diálogo de Séverin com a deusa, na busca humana para compreender os motivos de Vénus usar a pele, já que não faz verdadeiramente frio. Apagam-se, também, dois mil anos de história, que separam a cultura grega de deuses que riem dessa cultura cristã do Norte, onde o mundo é habitado por demónios. Quase não se ouve, por fim, a resposta e pedido da deusa para que se deixe o mundo pagão repousar sob as lavas e escombros, já que, junto aos cristãos, nós, afirma a deusa, morremos de frio. Não bastasse a reclamação dessa Vénus vestida com peles, a tradução do texto para o francês, feita por Raphael Ledos Beaufort, em 1902, apresentava algumas incorrecções, possivelmente tornando mais fraca a voz e a queixa da deusa, num reforço daquilo que, supomos, o espírito vitoriano, ainda reinante no início do século XX, foi capaz de censurar.
Mesmo que não se possa acusar a nossa cultura de calar-se diante do corpo, de suas impurezas e sua sexualidade, as práticas que se relacionam a isso emergem em vocabulário e enunciações domesticados, num indício de um aprofundamento do que chamamos civilização. A escrita da história também não escapou a esse processo civilizador. Segundo Porter (1983), a história do corpo tem sido negligenciada em virtude dos elementos clássicos e dos ditames judaico-cristãos da cultura ocidental, que, por razões e caminhos distintos, separaram corpo e alma e deram primazia ao pensamento. O corpo tornou-se o lugar da corrupção. Esse cenário sofreu, entretanto, alguma mudança na segunda metade do século XX. Em virtude das mudanças sociais advindas dos movimentos de direitos civis e igualdade de géneros, bem como pelas mudanças inerentes ao campo disciplinar, abriram-se novas perspectivas para pensar a escrita historiográfica. A incorporação dos sentimentos e sensibilidades como objectos da história significou em alguma medida a composição de estudos sobre as representações, tal como já se fazia com o trabalho ou o poder. O risco que se evidenciou foi o do distanciamento entre o estudo das experiências concretas vividas pela sociedade e aqueles relacionados às formas de pensamento e expressão das sensibilidades.
Embora não se deva reduzir a história social à história dos conceitos, há uma relação entre os dois campos. As transformações vivenciadas realmente devem ser percebidas a partir da forma como elas são enunciadas socialmente. A experiência da linguagem e dos testemunhos também não é suficiente, embora essencial, para afirmações conclusivas sobre certos aspectos da realidade. Assim, independentemente da maneira como é denominado no campo historiográfico o estudo do pensamento, da sensibilidade, do corpo etc., cabe ressaltar a interdependência desses estudos com as relações ditas concretas». In Daniel W. Ferreira, Erotismo, Libertinagem, Revista de História da Historiografia, Nº 3, 2009, Nº 125, ISSN 1983-9928.

Cortesia de RHdaHistoriografia/JDACT