terça-feira, 18 de abril de 2017

A Trança Feiticeira. Henrique Senna Fernandes. «Ultrapassadas as pausas iniciais, a conversa tomou uma direcção que não tinha planeado. Que conversa podia ter uma aguadeira…»  

jdact

«(…) A insistência dele, porém, removeu os escrúpulos. Cortando-lhe o caminho da estrada, à vista dos transeuntes curiosos e da A-Sâm, desconfiada, aceitou o primeiro encontro a sós. Este realizou-se, à falta de melhor, no escuro do Jardim de Vasco da Gama, onde não alumiava candeeiro, num banco entre buchos cerrados que os abrigaram de olhos indiscretos. A-Leng apareceu trémula e nervosa, relanceando o olhar para todos os lados. Não estava à vontade, qualquer ruído a sobressaltava, como se fosse seguida pelos zaragateiros de Cheok Chai Un. Sentaram-se, ela num extremo do banco e ele no outro. No princípio, mal respondeu às perguntas, num descoroçoante laconismo. Adozindo não tentou aproximar-se. Tratava-se duma mulher de mentalidade e educação de que não fizera a perfeita avaliação. Era um animal bravio e assustadiço, na defensiva, pronto a desaparecer, ao mínimo gesto incorrecto. Era preciso paciência, muita paciência. Tudo uma questão de tempo.
Ultrapassadas as pausas iniciais, a conversa tomou uma direcção que não tinha planeado. Que conversa podia ter uma aguadeira, se não as coisinhas do seu bairro, o comesinho do seu quotidiano, o poço e a avó, o templo de Tou Tei? Mas fora o primeiro passo. Ela falara e era tudo. Uma escassa meia-hora e ela ergueu-se. Justificou-se. Dormia cedo, saltava do catre, mal o sol despontava, e era o resto do dia, numa lufa-lufa, acarretando água para muitas casas, em correria até o anoitecer. Punha ênfase nas palavras, para demonstrar que não cedia facilmente. Podia ser uma ignorante, mas tinha a sua honra e o seu pudor. Não era barata... Foi cansativo marcar um novo encontro. Ele suspirou, assinalando tristeza, a pedir que não fosse má. Persistiu e, por fim, ela consentiu: depois de amanhã, à mesma hora. Paciência, muita paciência, porque a paciência era o segredo da vitória. Num ápice, a silhueta esbelta diluíu-se na escuridão. Adozindo rilhou a decepção, puxou dum cigarro que fumou lentamente. Preparou a desculpa da demora à viúva ciumenta, que o esperava no Baixo-Monte.
A-Leng estava mais confiante e serena, no segundo encontro. Chegara pontualmente, usando das mesmas cautelas. A conversa girou, outra vez, sobre o Cheok Chai Un, mais esmiuçado em pormenores. Era pobre, muito pobre, mas não ambicionava muito mais. Contentava-se com o que já possuía. Gostava, apesar de tudo, do ofício, a única coisa que afinal cumpria bem. Adozindo pouco disse da sua casa, para não frisar o contraste do teor de vida de cada um deles, mal desconfiando que ela já o avaliara. Procurou factos e eventos da escola, assuntos que a dispunham bem. No escuro do banco, soniram gargalhadinhas repesas. Tudo caminhava bem. Não a tocou, embora a distância entre ambos fosse menor. Paciência, muita paciência.
Quando deram pelo tempo, tinham decorrido cinquenta minutos. A-Leng saltou, com pressa doida. Faltara ao serão da Abelha-Mestra. Haviam de estranhar e comentar a sua ausência. Não compareceu ao terceiro encontro, mas ele permaneceu fiel, à espera dela, noutras noites. Mal dominava a irritação. Levara a paciência até ao exagero, contra os seus hábitos e temperamento. Com outras, não actuara assim. Vexava-o não avançar mais, para além daquela estúpida adoração platónica. Uma aguadeira! Mas apostara na posse do seu corpo e da sua trança. Agiu com astúcia, não a perseguindo, em pleno dia. O trajecto dela para a sua casa estava repleto de curiosos e pressentia falatório no ar. A criada A-Sâm surpreendera qualquer coisa e pusera-se de atalaia, para observar as idas e vindas da rapariga. Não devia, pois, embaraçá-la e ganhava mais confiança. Paciência, muita paciência.
Mas tudo isto esgotava-lhe os nervos. Era uma obsessão. Descontava a sua frustração na viúva ciumenta que, pela primeira vez, já exigia cartas na mesa. Lucrécia não queria manter-se viúva eternamente, quando já não havia razão para isso. Como sempre acreditou, A-Leng regressou para o escuro do banco, à mesma hora. Vinha ofegante, não resistira, movera-se catapultada por um fogo interior e uma mola invisível. Arranjara desculpas, saíra do bairro, alongara o caminho, por ruas e vielas, para despistar quem possivelmente a seguisse». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da FOriente/JDACT