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«(…) Aquele triunfo no coração arisco da aguadeira exultou e estimulou o
brio do Belo Adozinho. À noite, no bilhar, expandiu a sua euforia, pagando cervejas,
mesmo àqueles com quem tinha pouca familiaridade. O amigo Florêncio, o que lhe
comia gostosamente as migalhas, adivinhou novo negócio de saias. Danou-se. Com uma
viúva rica, a cobiçada Lucrécia, perdida de amores, o que é que ele pretendia mais?
Que melhor chinela para o pé podia encontrar? Era desafiar demasiado a sorte. Quem
é a nova ela? Adozindo encapotou-se num ar de mistério, divertindo-se
com o amigo, a desenrolar na mente as possíveis vítimas do garanhão. Não podia confessar
que o fruto dos seus amores era uma rústica escultura de pé descalço, correndo pelas
ruas, vergada pela canga dum tám-kón (varapau) de aguadeira. Seria
rebaixar o seu lustre de conquistador e Florêncio não compreenderia.
Agora, à beira da supina satisfação do seu objectivo, Adozindo já não se
contentou com os encontros de passagem, palavras trocadas à pressa. Queria algo
de mais demorado, o desejo da posse, a trança enlouquecia-o, cegava a razão e a
prudência. A-Leng, por seu lado, vivia em constante consumição. A imagem do
moço grudara-se-lhe na mente. Aquilo nunca lhe acontecera. Era analfabeta, não tivera
tempo nem dinheiro para frequentar a escola. Mas não era promíscua nem barata, distinguia
o que era bem feito e o que não era.
Era sua a sociedade de Cheok Chai Un. Para os de fora, era um antro de má
fama, um covil de prostitutas e de facínoras. Mas, para os de dentro, imperava um
código de honra, havia uma maneira de ser e de se conduzir, tradições e costumes
próprios que tinham de ser cumpridos, sob pena de reprovação geral. Na verdade,
não se instalara ali nenhum bordel. A gente que ali habitava, era a sua gente. Crescera
na ideia de que a sua existência inteira decorreria no bairro, como as suas
companheiras. A intromissão do kuai lou na simplicidade da sua vida
complicara esse caminho de antemão traçado. Ele girava num meio diametralmente oposto
ao seu, sobretudo, na língua, na religião e nos hábitos. As diferenças esmagavam.
Ficara emudecida, ao visitar o interior da casa dele, num dia em que os
donos da casa e demais família, se tinham ausentado, conduzida pela mão da criada
A-Sâm, orgulhosa de ostentar onde trabalhava. Os quartos de dormir, a casa de
banho, a sala de visitas, a casa de jantar, o gabinete do patrão, empilhado de livros,
as mobílias, os tapetes, os cortinados, tudo isto que jamais vira, reduzira-a a
um silêncio humilde. Nunca pisara soalho tão brilhante, cheirando a cera, envergonhada
por sujá-lo com a lama dos pés, a criada esfregando depois, para não deixar vestígios.
O assustador aparelho telefónico cravado na parede, a grafonola de boca hiante,
as ventoinhas, a geleira, os sofás e as camas fofas, tudo que os seus olhos e
os outros sentidos jamais conheceram.
E o quarto do Menino, tão arranjadinho e perfumado, com o leito de molas
de sonho. A arrebitada A-Sâm obrigou-a a experimentá-las e corou com a sensação
voluptuosa dos lençóis frescos. Não havia, portanto, termo de comparação com qualquer
dos jovens de Cheok Chai Un. Devia logicamente negar-se ao contacto com esse homem
que não levava a nada, evitá-lo, manter a hostilidade inicial, para a própria defesa.
Mas amolecia triste, a pensar nisso. A sua resistência esfarelava-se. Sentia-se
uma mariposa vulnerável, atraída irremediavelmente para a luz da lâmpada, onde
queimar-se-ia, mas não sabia fugir». In Henrique Senna Fernandes, A
Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.
Cortesia da
FOriente/JDACT