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A Longa Espera pelo Trono. O mundo que viu Sancho nascer e crescer
«(…) A medida que a Reconquista progredia para sul, era necessário restaurar
as igrejas que durante vários séculos tinham ficado sob domínio muçulmano, e
seria ingénuo esperar que os reis que protagonizavam essa conquista não
quisessem ter uma palavra a dizer sobre a reorganização eclesiástica desses
territórios e sobretudo sobre as pessoas que deveriam ser postas à frente das
estruturas então restauradas. Nesse contexto, a forma como os arcebispos se
relacionam com os reis dos reinos nos quais se situam as suas arquidioceses
assume uma importância fulcral e a Hispânia do século XII assistiu à
consciencialização por parte de reis e arcebispos da necessidade e vantagem da
sua colaboração na promoção dos interesses respectivos. Os arcebispos de
Toledo, de Santiago de Compostela, de Braga e de Tarragona transformaram-se nos
aliados mais fiéis e úteis dos reis de Castela, Leão, Portugal e Aragão,
respectivamente. Não só porque tentavam que os territórios das suas arquidioceses
correspondessem aos territórios dos reis que serviam e que os protegiam, mas ainda
porque insensivelmente todos esses arcebispados passaram a ser a instituição
onde os reis recrutavam os seus chanceleres e de onde saíam numerosos notários
para um dos órgãos decisórios mais importantes da cúria dos reis, a
chancelaria.
Esta simbiose entre arcebispados e reinos em breve ajudaria a agudizar
ambições pessoais e institucionais, dos arcebispos, como dos reis. Ora a
questão do primado insere-se precisamente neste contexto. Quando Afonso VI
conquistou Toledo aos mouros, em 1085, o papa achou por bem confirmar a
restauração da antiga arquidiocese visigótica e conceder-lhe o estatuto
eclesiástico de primaz das Hispânias, tal como nesses longínquos tempos
visigóticos detivera. O facto de Toledo passar a deter o primado, ou seja, o
direito de primazia sobre todas as outras igrejas hispânicas, implicava que
todas as outras igrejas da Península Ibérica deviam prestar-lhe obediência como
à sua cabeça.
Essa realidade daria origem à legítima preocupação, neste mundo ainda
em construção, de que se pudesse considerar dever haver uma contrapartida dessa
primazia na estruturação política da Hispânia, e havia de gerar as bases da
quase crónica querela que viria a unir reis e arcebispos numa interessante
comunidade de interesses, na medida em que as recusas em obedecer a Toledo por
parte dos restantes arcebispos peninsulares acabariam por ter uma inegável
leitura política na recusa dos restantes reis peninsulares em obedecerem ao rei
de Toledo, isto é, ao rei castelhano. Mas de início, quando o papa agraciou
Toledo com o primado das Hispânias, em 1088, nenhum dos restantes arcebispos
peninsulares parece ter dado grande importância a essa concessão, e semelhante estado
de indiferença havia de se manter ainda durante quase cinquenta anos. Seria só
a partir dos anos 40 do século XII que tudo mudaria, e que a questão começaria a
tornar-se absolutamente central, com as suas múltiplas ramificações e
ingerência nas restantes esferas de poder, e sobretudo na sua coordenação com a
outra querela eclesiástica por excelência destes anos, a que oporia Braga e
Compostela, especialmente na vertente relacionada com o problema da jurisdição
sobre as dioceses de Coimbra e Zamora, Lisboa e Évora.
Ora a questão do primado não se tornou subitamente essencial, não se tornou
premente e nuclear, naquela altura e não noutra, por mero acaso. O facto é que
se tornou absolutamente central, quando as evoluções políticas dos
reinos peninsulares tornaram a questão da hierarquização eclesiástica um
assunto relevante. Com Afonso VII no trono de Leão e Castela, um reino forte
com tendências expansionistas, os restantes reinos hispânicos sentiram as
exigências do arcebispo de Toledo em receber a obediência dos restantes arcebispos
como uma tentativa de apropriação política dos seus reinos. O mesmo se diga de
Portugal, onde a questão se torna central precisamente na fase em que Afonso
Henriques afirmava a sua soberania sobre o território português com maior veemência
e nos anos que se seguiram ao seu pedido de protecção papal para as suas
pretensões a ser considerado miles beati Petri. Acontecia
precisamente nos anos do reinado de Afonso Henriques durante os quais ele
liderava o que parecia uma inspirada campanha para sul e leste. E a
reivindicação da independência e soberania do arcebispado de Braga face ao de
Toledo surgia quase como uma afirmação de independência do reino português face
ao castelhano-leonês de Afonso VII, razão por que o arcebispo de Braga, João
Peculiar, sempre tentou evitar jurar essa obediência ao toledano.
A fase mais aguda desta querela decorreria precisamente entre 1144 e
1163, facto que decerto deverá imputar-se tanto à índole determinada e
aguerrida dos arcebispos de Toledo e Braga como à hostilidade entre os reis que
serviam e aos receios derivados da possibilidade de sucesso do pedido de Afonso
Henriques para ser reconhecido como vassalo da Santa Sé e rei de Portugal». In
Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates,
Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.
Cortesia de Bertrand/JDACT