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Quando Dan desapareceu na direcção do bar, algures nos confins do átrio, um
outro colega apareceu ao seu lado. Olá, Jess! Will Matthews fez uma careta ao
ouvir o barulho. Vamos ter problemas com os vizinhos. Apontou para as portas do
átrio com uma garrafa de cerveja loura meio vazia. Jess e aquele homem alto,
louro e atraente tinham sido tema de mexericos durante a maior parte dos três
anos em que ela dera a cadeira de Literatura Inglesa no Sixth Form College de
North Woodley, no sul de Londres. A maior parte desses anos, mas não agora.
Will era professor efectivo no departamento de História. Também treinava as
equipas de basquetebol, squash e atletismo. De camisa azul, colarinho aberto, calças
de ganga e cinto de rebite em couro amplamente trabalhado, ele atraía, reparou,
vários pares de olhos lúbricos entre as suas alunas adolescentes.
Jess
e Will tinham sido um casal perfeito em muitos sentidos, mas sempre houvera
algo entre os dois que não corria exactamente bem. A ambição de Will, talvez; a
sua certeza, cortesia engendrada por uma mãe extremosa e duas irmãs mais novas,
de que era irresistível; a tendência para presumir que o seu trabalho, a sua
carreira, a sua visão do mundo, tinham precedência sobre os dela; o
paternalismo, talvez involuntário, com que via uma carreira no ensino da
Literatura e o incontestável talento de Jess como aguarelista. Tudo isto lhe
causara ressentimentos. Quando Will a convidara para ir viver com ele, ela
descobrira que, acima de todas as arrelias, e por muito que gostassem um do
outro, não suportava perder a sua independência. E nisto começara a descida escorregadia
até à ruptura. Não existia outra mulher, pelo menos Jess nunca ouvira dizer que
houvesse alguém. Fora simplesmente a recusa de Will em aceitar uma solução de
compromisso e reconhecer a autonomia dela que se metera, por fim, entre os dois
e destruíra a relação em duas ou três breves semanas, deixando-a zangada e
confusa e, a Will, infeliz e amargo. Depois desta azeda separação, tinham-se
evitado em absoluto, o que era difícil no interior do colégio, mas ainda assim
perfeitamente exequível, se ambos se empenhassem. Coisa que tinham feito. Até
àquele momento. Vá lá, Jess. Uma dança, pelos bons velhos tempos? Sorriu-lhe, insinuante.
Jess franziu o sobrolho.
Não
me parece, Will. Oh, vá lá. Para mostrar que não há rancores? Fim de trimestre.
Bons resultados, pelo amor de Deus! Nem precisas de voltar a ver-me! Ela
arqueou uma sobrancelha. Porquê? Vais-te embora? Ele deu uma gargalhada. Isso
querias tu! Não. Mas, no próximo trimestre, prometo evitar-te como à própria
peste. Jess resistiu ao impulso de devolver o sorriso. Aquele sorriso sempre
fora a sua perdição. Era demasiado charmoso; demasiado persuasivo; de longe,
demasiado atraente. Tinha de ser forte. Vamos continuar a evitar-nos um ao
outro, certo, Will? Dá-me licença. Tenho de ir cumprimentar Ash. Ocultando o
desejo que sentia, a tentação ainda tão viva, dirigiu-lhe um encolher de ombros
tenso e apologético e virou-lhe as costas. Depois, inspirou a última golfada de
ar fresco e mergulhou na massa palpitante de corpos que dançavam, deixando-o
parado a olhar para ela.
Assim
que a viu, Ashley afastou-se da sua mesa de mistura, fez sinal a Max para que o
irmão mais novo, que estava no palco ao lado dele, o substituísse e saltou para
o chão. Venha dançar, Jess! Ash aproximou-se com um sorriso nos lábios, o rosto
atraente coberto de gotas de suor, a camisa de cores vivas ensopada, e as suas mãos
pegaram nas mãos dela, levantando-lhe os pulsos e largando-a em seguida, pronta
e em posição para começar a dançar, enquanto ele rodopiava, meneando as ancas à
sua frente. Ela não devia rir-se. Devia repreendê-lo por tratá-la por Jess, mas
para quê? As aulas tinham acabado em todos os sentidos. A época de exames
terminara. A noite estava quente e convidativa, e todos aqueles jovens se
divertiam. Talvez pudesse mesmo soltar o cabelo. Dançou com Ashley, dançou com
vários outros alunos e dançou com Brian Barker, o director do colégio. Por fim,
já muito descontraída, dançou com Will, parecera-lhe um esforço demasiado
grande rejeitá-lo. Bebeu o ponche de frutas de Dan. Depois, mais um pouco, com
um shot extrapicante reservado ao pessoal! Tornou a dançar com Dan e, em
seguida, com Ashley, uma última vez. Já era de madrugada quando a festa
finalmente acabou, após a segunda visita da polícia.
Ashley
tinha ficado à espera dela à saída do átrio. Depois disso, Jess não se lembrava
de nada. Preparando com mãos trémulas uma chávena de café, bebeu-o em pequenos
goles, devagar. Quem teria convidado, já tão tarde, para um copo de vinho? Não
tivera mais nenhum a relação depois de Will. Não se sentia atraída por ninguém,
muito menos por algum dos seus colegas do colégio. Não agora. Não era o tipo de
pessoa que levava um encontro casual para casa e acabava na cama com ele. E
ninguém, absolutamente ninguém que ela conhecia, a teria ferido e deixado
naquele estado. Puxando pela cabeça enquanto beberricava o resto do café, lembrou-se
de ter visto Ash saltar do capô de um carro para o tejadilho e pôr-se a
declamar, de punhos erguidos na direcção das estrelas. Shakespeare. Citara
Shakespeare, esse rapaz que ela protegera e estimulara com tanto cuidado na sua
sala de aula, que dirigia a sua própria trupe de actores de rua e que
acalentava o sonho secreto de entrar na Academia Real de Artes Dramáticas (RADA),
o sonho de ser actor num palco do West End, de desafiar as suas origens, o pai
ausente, os irmãos drogados, assim confirmando a fé determinada e silenciosa
que a mãe tinha nele. Ash gritara o discurso para o mundo ouvir e, no fim, rindo-se,
saltara para o chão e fizera-lhe uma vénia cortês». In Barbara Erskine, A Princesa
Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.
Cortesia de PManuscrito/JDACT