jdact
A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
Dois homens conversavam na sacristia da igreja abandonada, sob a luz filtrada
por uma janela geminada. O rei Filipe VI de Valois era o mais alto. Ainda trazia
a armadura vestida e a sobreveste azul com as flores-de-lis douradas de França e
gesticulava como que à beira de um acesso de raiva. O aristocrata que se encontrava
consigo, de modos mais pacatos, estava por sua vez envolvido num elegante capote
escuro que destacava a carnação clara e os cabelos ruivos. Maynard tentou lembrar-se
de onde já o havia visto, embora a sua principal preocupação, naquele momento, consistisse
em manter um porte digno na presença, do soberano. Para isso recusara apoiar-se
no rapaz e procurara um cajado, de modo a caminhar erecto, sem forçar a perna esquerda.
Empresa nada simples, sobretudo tendo de enfrentar as escadas no interior da
igreja.
Ao
ver o monarca envolvido numa conversa, pensou recuar e procurá-lo mais tarde.
Depois lembrou-se de que a sua presença poderia ter sido notada. Vossa majestade,
disse, com uma vénia embaraçada, peço audiência. Rocheblanche, o rei fez-lhe sinal
para que avançasse, pensávamos que tivésseis caído em batalha. Estou vivo por
milagre, majestade. O monarca examinou-o dos pés à cabeça. O que vos traz à minha
presença, com essa perna tão magoada? Uma notícia funesta. Vejo, porém, que estais
ocupado, e não desejo ser inoportuno.
Não façais
cerimónia. Filipe VI apontou para o homem a seu lado. Este é o nobre Karel, conde
do Luxemburgo. O filho do rei da Boémia. Podeis falar livremente na sua presença.
Maynard observou com atenção o rosto do homem de cabelos ruivos e recuou um passo.
Nem ao meu filho, intimara Jang de Blannen. Karel do Luxemburgo conservava
os mesmos traços do pai, embora menos altivos e decerto não tão harmoniosos. Tinha
um nariz demasiado grande, a testa descoberta pela calvície e as maçãs do rosto
excessivamente pronunciadas. Contudo, foram os olhos azuis, arregalados e salientes,
a deixá-lo de pré-aviso.
Então,
Rocheblanche?, incitou-o o rei, contrariado pela sua hesitação. Que notícia nos
trazeis? O cavaleiro manteve o olhar fixo no príncipe Karel, envolvido numa
inesperada sensação de desconforto. João I da Boémia está morto, e baixou a cabeça
em sinal de luto. Filipe VI cruzou os braços sobre o peito. Tendes a certeza, senhor?
Nós pensamos que terá caído nas mãos dos ingleses. Infelizmente, mais do que a
certeza, confirmou Maynard. Dei com o seu corpo martirizado enquanto tentava abandonar
o campo de batalha. Karel interveio sem denunciar qualquer emoção. Era já cadáver?
Antes de responder, o cavaleiro teve a impressão de que o príncipe se afastava lentamente
do feixe de luz, como que para se esconder.
Ainda
não, alteza. Falou-vos? Poucas palavras, mentiu Maynard, apenas para encomendar
a alma a Deus. Algo na inflexão daquela pergunta deixara-o de sobreaviso. Sim? O
rosto de Karel eclipsava-se na sombra. O meu nobre pai era um homem de muitos segredos.
É estranho que não vos tenha confiado nenhum quando estava prestes a morrer. Rocheblanche
encolheu os ombros. Embora ardesse de vontade de referir as palavras de Jang de
Blannen, um pressentimento incitou-o a calar-se. E se se encontrasse precisamente
diante do artífice da conspiração? O príncipe encostou um punho ao queixo, enrugando
a testa.
Então
dizeis que expirou rezando, continuou, pensativo. Como um homem comum. Como um valoroso
guerreiro, precisou Maynard, dirigindo-se ao rei de França para interromper um discurso
potencialmente insidioso. Um homem corajoso de quem devemos tirar o exemplo. É uma
referência à nossa retirada?, replicou o rei, irritado. Salientava apenas a lição
de coragem, majestade. A coragem não é sinónimo de inteligência estratégica, comentou
o monarca. E creio que Karel do Luxemburgo está pronto a admitir que o seu nobre
progenitor se sacrificou para concretizar uma proeza estúpida.
Não por
uma proeza, inflamou-se Maynard, sentindo desprezar os valores com que crescera.
Mas para incitar os homens ao ataque. Filipe VI abanou a cabeça. Conduziu-os ao
massacre quando os dados já estavam lançados. Expôs a cavalaria aos arqueiros
de Eduardo III. Sei-o perfeitamente, mas... E sabeis também quantos caíram, Rocheblanche?,
gritou o rei, desdenhoso. Mais de quatro mil! Quatro mil cavaleiros vossos
irmãos! Os ingleses dizimaram a nossa nobreza». In Marcello Simoni, A Abadia dos
Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
Cortesia de
CdoAutor/JDACT