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A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
Maynard baixou o olhar, mais por respeito pelos companheiros mortos do que por
receio do monarca. É verdade que subvalorizámos os arqueiros, admitiu, de
dentes cerrados. Mas da próxima vez... Não haverá próxima vez, silenciou-o
Filipe VI. Não no futuro imediato, pelo menos.
O
cavaleiro foi invadido pelo espanto. Não ides ficar à espera de que Eduardo III
e o Príncipe Negro marchem sobre Paris! A sua meta não é Paris, mas Calais. E
ireis deixar que a tomem de assalto? Não temos escolha.
Maynard
suspirou, profundamente desiludido. Não era uma crítica à estratégia a adoptar,
mas à facilidade com que fora silenciado. Se é como dizeis, majestade, isso
significa que em Crécy perdemos algo mais importante do que uma batalha.
Rocheblanche!, apostrofou-o o rei. O senhor vosso pai nunca se permitiria
dirigir-se a nós com tal insolência. O meu pai era um animal, pensou o cavaleiro.
Antes de responder, detectou um olhar rápido do príncipe Karel a um candelabro
coberto de ferrugem, atrás do qual entreviu uma figura negra que se movia na
sombra. Um segundo depois, a figura deslizou na escuridão.
Mavnard
pensou fazê-lo notar ao monarca, mas mordeu a língua. Já vira e falara o suficiente.
Peço
licença, disse, portanto, fingindo-se consternado. Não pretendia faltar ao
respeito, apenas expressar a minha opinião. Não peço opiniões. Filipe VI estava
longe de querer acalmar-se. Não penseis que irei cobrar barato, senhor. Foi
então que Karel do Luxemburgo se intrometeu na conversa. Majestade, disse, em
tom conciliador, talvez o vosso cavaleiro apenas precise de descanso. Deteve-se
à sua frente com ar melífluo. Reparastes na sua palidez? Mais do que o seu carácter,
a ferida na perna deve ter-lhe comprometido o entendimento.
Contudo,
a insolência deve ser punida, retomou o monarca. Fazei uma excepção, por mim, insistiu
o príncipe. Este homem trouxe notícias de meu pai. Infelizmente, notícias
tristes, mas que, porém, me tornam seu devedor. Depois de um instante de silêncio,
o rei concordou. Rocheblanche, agradecei ao nobre Karel pela sua magnanimidade.
E, impaciente, acrescentou: dispensamos-vos com a ordem de regressardes às
vossas terras logo que estiverdes recomposto. Nunca mais ouseis faltar ao
respeito ao vosso soberano. Maynard apoiou-se no cajado e desenhou uma reverência.
Erguendo os olhos, avistou o riso malicioso de Karel do Luxemburgo e notou que
este o observava com a desconfiança ávida de um inquisidor. Percebeu então que
não conseguira enganá-lo. E que fizera um grande inimigo.
Chegar
à saída da igreja não foi empresa fácil. Não pela dificuldade em andar, mas devido
ao peso que Maynard começava a sentir dentro de si. Era verdade que Karel do
Luxemburgo o defendera para o prender numa relação de cumplicidade. Uma cumplicidade
entre inimigos. E, embora ignorasse em que medida estava envolvido na morte de Jang
de Blannen, sentia que devia proteger-se daquele homem. Desconfiava de que ele
pressentira a sua mentira e de que, de uma maneira ou de outra, se esforçaria por
descobrir o que lhe escondia.
Parou
a meio da nave central, como que para pedir conselho ao crucifixo que se
destacava no altar. Viu-o reluzir sob uma janela destituída de vitrais, esculpido
na madeira. O Cristo suspenso pelos pregos era magro e nodoso, com dois grandes
olhos talhados em forma de gota. O cavaleiro entreabriu os lábios para lhe
dirigir uma prece, mas foi de tal modo atraído que já não conseguiu formular um
único pensamento. Dor corporal e dor espiritual». In Marcello Simoni, A Abadia dos
Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
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