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Vasco
da Gama e o samorim de Calecute
«(…)
Quando a armada acalmou as suas bocas-de-fogo, as paredes do palácio pararam de
tremer. O samorim ainda aguardou uns minutos a certificar-se de que a ira dos portugueses
tinha acalmado. Depois, bem depois, ainda trémulo, a vacilar, abeirou-se da
janela estreita e olhou o mar. Ficou boquiaberto. Ao largo, viu os barcos
alquebrados sobre as águas, envoltos em chamas e fumo negro. Só as embarcações
portuguesas estavam intactas, imponentes. Três naus e uma caravela perto da
costa, e uma outra mais longínqua que, de vez em quando, ainda disparava sobre
pequenas barcas fugidias. O porto estava arrasado, sobravam apenas destroços,
como se a terra tivesse tremido. A cidade estava esfacelada de um lado, com uma
grande área semidestruída e em chamas, de onde se ouviam clamores de angústia.
As suas gentes começavam a sair dos refúgios, a ver o volume dos destroços, a
contar os mortos entre os seus, a 1ançar gritos de desespero aos céus. O pânico
tinha-se instalado e todos começavam a correr em debandada para o outro lado da
cidade, deixando os seus pertences, esquecendo os cadáveres e os feridos,
largando as crianças assustadas e sujas pelas ruas, sufocadas em choro. Corriam pela vida, sentindo-se esquecidos pelos deuses e
pelo seu senhor, que era deus em terra de homens, e que sempre os tinha protegido
dos invasores. Mas o samorim teve a mesma sensação de abandono e
impotência. Um calafrio lambeu-lhe a espinha e suores frios caíram-lhe pelo
rosto. Estava em pânico. Ao longe, só os amontoados de cabanas de colmo dos sem
casta pareciam ter sido poupados. Toda a parte nobre da cidade estava ferida de
morte e até uma parte do sumptuoso palácio tinha sido atingida. Algumas torres ornamentadas
estavam derribadas sobre os jardins.
Apenas
alguns pórticos resistiam. Havia já colunas de pórfiro tombadas pelo chão, deixando
os zimbórios semi-arruinados, tombados de esguelha sobre os fendidos terraços de
mármore branco, por onde se viam os nobres brâmanes e serviçais sudras a fugir lado
a lado sobre os escombros, esquecendo a hierarquia das castas. As flores tinham
perdido o viço e os lagos artificiais vazavam águas prenhes de peixes mortos. As
flores não tinham cor, como não tinham cor os peixes nem as faces atemorizadas do
samorim. Foi então que vários guerreiros entraram nos seus aposentos. Dois barcos
militares com portugueses dirigem-se à terra, informaram os homens, sem as usuais
mesuras perante a presença do Príncipe dos Mares. Glafer compreendeu que
podia estar eminente um ataque por terra à sua residência e que a sua própria
vida corria perigo. Entendeu por isso que melhor seria fugir, ou antes, retirar-se
estrategicamente para um lugar mais seguro, o seu palácio oficial, no interior do
principado, junto às montanhas. Partiu resguardado na força dos homens mas
rezando pela protecção divina. Na sua boca cabiam em simultâneo as palavras sagradas
com que exultava os deuses e as palavras rudes com que amaldiçoava os portugueses
e a hora em que os ventos os tinham levado a aportar nas suas terras, dois anos
antes, ainda no governo de seu tio...
… Corria
o dia 17 de Maio do ano do Senhor de 1498, quando três velas de grande
porte chegaram com o vento sul e riscaram o horizonte límpido do mar de Calecute.
Estavam capitaneadas por um barbudo infernal, Vasco da Gama, ele a bordo da nau
São Gabriel, seu irmão Paulo da Gama, ao leme da nau São Rafael, e
o conhecido capitão dos mares, Nicolau Coelho, à frente da caravela Bérrio.
Há dias que marcam a história dos povos e este era um desses. O sol fingia ser igual
ao de tantos outros dias, porque as sortes das gentes mudam de repente sem que os
céus enviem um sinal. Dezassete de Maio, as costas malabares nunca mais seriam as
mesmas; nem mesmo o reino de Portugal». In João Morgado, Vera Cruz, Clube
do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.
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