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Recuo e Afirmação do Simbolismo na Filosofia Moderna
«(…) Do que vimos dizendo não se pode obviamente concluir que a
harmonia entre a ciência e o simbolismo das criaturas se tivesse apresentado como
um domínio de pacífica e uniforme aceitação, ao longo dos séculos XVII e XVIII
na Europa, como também é importante afìrmar que a sua relevância não se
confinou, apenas, aos países da Europa do Sul. Tal uniformidade, aliás, não se
verifica nunca em nenhum domínio da aventura intelectual do homem, a qual
tende, antes, a afirmar-se como um espaço articulado, de diferenças, de que
emerge, afinal, a sua própria riqueza e a garantia da sua vitalidade
intrínseca.
Assim, um dos aspectos que permite sublinhar, em certa medida, o
interesse desta concepção é o facto de ela se afirmar no seio de outras concepções
possíveis, incluindo, sobretudo, a posição contrária, o que permite considera-la
como resultado de uma afirmação clara de valores culturais. Com efeito, desde a
efervescência filosófica e científica do período renascentista, vinham-se
formulando variados processos de interpretação da natureza, a par da
permanência da importante herança medieval. É a época em que, como sugere
Claude G. Dubois, se afirmaram três grandes registos ou grupos de metáforas,
confìgurando uma saudável variedade dos modos de conceber a natuteza.
O primeiro traduz um procedimento mimético, já sob o ponto de
vista antropomórfico, já sob o ponto de vista teomórfico. Ambos se afirmam como
herança de uma tradição anterior, enriquecida agora com novas referências. Neste
primeiro grupo deveremos integrar a concepção do homem como um microcosmos
e também a concepção do mundo à imagem de Deus, infìnitamente poderoso e dotado
de faculdades criadoras. O segundo, aquele que aqui mais nos interessa sublinhar,
é o que nos oferece uma natureza como um campo de significação, um canto, um
poema, um mensageiro, um porta-palavra..., exigindo um processo de
interpretação, em ordem a captar um sentido profundo.
Trata-se, diz Dubois, de um universo-partitura, reenviando, neste caso
particular, para uma escrita musical. Trata-se, também, de um universo-livro,
de um universo-palavra ou, ainda, de um universo-espectáculo, vertentes que
abarcam, dentro de si, uma relação fundamental da natureza com o sagrado. A
ideia de um universo-música ou de um universo-partitura, com a sua ressonância
pitagórica, permitia sublinhar, de forma cabal, uma perfeita aliança de contrários
e a consequente proporcionalidade, princípio fundamental da arquitectura do mundo,
que se resolve num canto, exaltando a glória do Criador. Já a metáfora do
universo-espectáculo, que no barroco se enriquecerá com uma profícua série de
metáforas teatrais, abre o espaço necessário para um importante aspecto desta
época moderna, o do deleite como sentimento característico do espectador, por
relação ao que lhe é representado. O espectáculo do mundo, é uma representação
de maravilhas, que, ao mesmo tempo que lisonjeiam os sentidos, provocam
e despertam uma atitude de profunda reverência perante o seu autor.
Entre estes dois pólos oscilou a concepção renascentista da natureza,
não sem que entre eles viesse a introduzir-se um terceiro elemento: a concepção
mecânica, expressando-se em metáforas como as do universo-máquina, do universo-objecto
ou do universo-relógio, dando guarida ao nascimento de um pensamento científico
que se quis transparente. Ora, a concepção de um universo-objecto acarreta,
zonas de potencial neutralização da interpretação simbólica da natureza, tal
como fora proposta pela filosofia medieval. O objecto, de que agora se
tende a falar é inteiramente redutível a fórmulas quantitativas. Levada ao extremo
das suas consequências, no domínio epistemológico, uma tal concepção tomar-se-á
incompatível com o campo da referência especular, embora se não desembarasse de
uma tradição especulativa que encontra nas ideias de ordem e razão o seu
principal suporte. Na realidade, no seu limite, o intelecto encontra sempre uma
necessidade imperativa de admitir um conjunto de ideias que definem e orientam
a afirmação do ser no mundo e das quais depende o próprio dinamismo do
pensamento. Uma delas, a ideia de ordern, que veremos persistir como condição
de inteligibilidade é, precisamente, a que sustém, desde a Antiguidade, a
prôpia ideia de natureza». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no
século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-270-700-0.
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