segunda-feira, 17 de abril de 2017

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «O espectáculo do mundo, é uma representação de “maravilhas”, que, ao mesmo tempo que lisonjeiam os sentidos, provocam e despertam…»

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Recuo e Afirmação do Simbolismo na Filosofia Moderna
«(…) Do que vimos dizendo não se pode obviamente concluir que a harmonia entre a ciência e o simbolismo das criaturas se tivesse apresentado como um domínio de pacífica e uniforme aceitação, ao longo dos séculos XVII e XVIII na Europa, como também é importante afìrmar que a sua relevância não se confinou, apenas, aos países da Europa do Sul. Tal uniformidade, aliás, não se verifica nunca em nenhum domínio da aventura intelectual do homem, a qual tende, antes, a afirmar-se como um espaço articulado, de diferenças, de que emerge, afinal, a sua própria riqueza e a garantia da sua vitalidade intrínseca.
Assim, um dos aspectos que permite sublinhar, em certa medida, o interesse desta concepção é o facto de ela se afirmar no seio de outras concepções possíveis, incluindo, sobretudo, a posição contrária, o que permite considera-la como resultado de uma afirmação clara de valores culturais. Com efeito, desde a efervescência filosófica e científica do período renascentista, vinham-se formulando variados processos de interpretação da natureza, a par da permanência da importante herança medieval. É a época em que, como sugere Claude G. Dubois, se afirmaram três grandes registos ou grupos de metáforas, confìgurando uma saudável variedade dos modos de conceber a natuteza.
O primeiro traduz um procedimento mimético, já sob o ponto de vista antropomórfico, já sob o ponto de vista teomórfico. Ambos se afirmam como herança de uma tradição anterior, enriquecida agora com novas referências. Neste primeiro grupo deveremos integrar a concepção do homem como um microcosmos e também a concepção do mundo à imagem de Deus, infìnitamente poderoso e dotado de faculdades criadoras. O segundo, aquele que aqui mais nos interessa sublinhar, é o que nos oferece uma natureza como um campo de significação, um canto, um poema, um mensageiro, um porta-palavra..., exigindo um processo de interpretação, em ordem a captar um sentido profundo.
Trata-se, diz Dubois, de um universo-partitura, reenviando, neste caso particular, para uma escrita musical. Trata-se, também, de um universo-livro, de um universo-palavra ou, ainda, de um universo-espectáculo, vertentes que abarcam, dentro de si, uma relação fundamental da natureza com o sagrado. A ideia de um universo-música ou de um universo-partitura, com a sua ressonância pitagórica, permitia sublinhar, de forma cabal, uma perfeita aliança de contrários e a consequente proporcionalidade, princípio fundamental da arquitectura do mundo, que se resolve num canto, exaltando a glória do Criador. Já a metáfora do universo-espectáculo, que no barroco se enriquecerá com uma profícua série de metáforas teatrais, abre o espaço necessário para um importante aspecto desta época moderna, o do deleite como sentimento característico do espectador, por relação ao que lhe é representado. O espectáculo do mundo, é uma representação de maravilhas, que, ao mesmo tempo que lisonjeiam os sentidos, provocam e despertam uma atitude de profunda reverência perante o seu autor.
Entre estes dois pólos oscilou a concepção renascentista da natureza, não sem que entre eles viesse a introduzir-se um terceiro elemento: a concepção mecânica, expressando-se em metáforas como as do universo-máquina, do universo-objecto ou do universo-relógio, dando guarida ao nascimento de um pensamento científico que se quis transparente. Ora, a concepção de um universo-objecto acarreta, zonas de potencial neutralização da interpretação simbólica da natureza, tal como fora proposta pela filosofia medieval. O objecto, de que agora se tende a falar é inteiramente redutível a fórmulas quantitativas. Levada ao extremo das suas consequências, no domínio epistemológico, uma tal concepção tomar-se-á incompatível com o campo da referência especular, embora se não desembarasse de uma tradição especulativa que encontra nas ideias de ordem e razão o seu principal suporte. Na realidade, no seu limite, o intelecto encontra sempre uma necessidade imperativa de admitir um conjunto de ideias que definem e orientam a afirmação do ser no mundo e das quais depende o próprio dinamismo do pensamento. Uma delas, a ideia de ordern, que veremos persistir como condição de inteligibilidade é, precisamente, a que sustém, desde a Antiguidade, a prôpia ideia de natureza». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-270-700-0.

Cortesia INCM/JDACT