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O
signo do sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…)
O homem do manto não o largava, continuava a arrastar-se tenazmente sobre a
perna direita. O médico supôs que estivesse ferido, depois reparou que lhe
fazia sinal para que parasse e temeu o pior. Devorado pelo temor, virou à
esquerda e percorreu um beco lamacento até chegar a um vinhedo. Prosseguiu,
escondendo-se por entre as fileiras até se convencer de que o homem lhe tinha
perdido o rasto; foi então que saiu a descoberto e se lançou a correr pela
Grande Rue. Conhecia bem aquelas paragens. Os teólogos do Convento de
Saint-Jacques tê-lo-iam ajudado, caso precisasse. Mas assim que chegou próximo
do dito edifício, percebeu que já não corria perigo. O homem do manto
desaparecera.
Abrandou
o passo e apoiou-se à parede, respirando com grande dificuldade. Tinha a testa
suada e os joelhos dormentes, havia séculos que não corria assim. Olhou várias
vezes para trás, temendo ter-se enganado. Mas não, na verdade o homem perdera-se.
Podia prosseguir calmamente até sua casa. Suspirou e percorreu a Grande Rue na
direcção das margens do Sena, deslizando por entre os clarões dos archotes
presos às paredes, ao mesmo tempo que a rua se tornava cada vez mais limpa e
mais larga. A ansiedade, porém, continuava a assediá-lo. Quem seria aquele
indivíduo? O que quereria dele? Tentou distrair-se pensando no que teria de
fazer no dia seguinte, terça-feira gorda. Teria seguramente aulas e encontraria
o seu aluno predilecto, Bernard, que aspirava ao cargo de bacharel.
Imerso
nestes pensamentos, chegou à rive gauche. O Sena corria um pouco mais
além, por trás de uma fila de pequenas casas erigidas debaixo de uma ponte de
pedra, a Petit-Pont. Suger percorreu-a até meio, escutando o profundo fluir das
águas, depois parou em frente de uma porta consumida pela humidade. Estava finalmente
em casa. Antes de entrar, olhou para a Île de la Cité, que se recortava como um
grande navio no meio do rio. O coração de Paris. Ali se erguiam a Catedral de
Notre-Dame e a escola do Capítulo. Ali se dava audiência a homens de nomes
sonantes como Rolando de Cremona, o teólogo dominicano vindo de Itália.
Catedráticos ilustres que para se manterem não precisavam seguramente de
recorrer a expedientes miseráveis…
No
entanto, ele próprio era magíster! Não era de certeza por ter recusado fazer-se
padre ou porque ensinava uma matéria que os teólogos não viam com bons olhos.
Que aqueles beatos o admitissem pelo menos, a salvação da humanidade dependia
do estudo de Avicena, não de Santo Agostinho. E mandando-os todos ao diabo, com
um gesto de desprezo, transpôs a porta. Estava cansado e só lhe apetecia
deitar-se e dormir, mas ao tentar fechar a porta foi acometido inesperadamente
por um estremecimento. A ponta de um sapato insinuara-se entre a ombreira e o
batente. Suger agiu instintivamente e tentou esmagá-lo de encontro à porta, mas
antes de poder dar-se conta do que acontecia, viu uma grande mão enfiar-se na
fresta e fazer resistência. Continuou a pressionar, servindo-se de todo o seu
peso, mas o intruso era mais forte e conseguiu alargá-la o bastante para
entrar. Foi então que o reconheceu. Era o homem do
manto!
Incapaz de o deter, viu-o transpor a
ombreira.
O que quereis de mim?, perguntou-lhe, entre irritado e espantado. Não é minha
intenção fazer-vos mal, assegurou o desconhecido, com um marcado sotaque
alemão. Era alto e bem lançado, mas parecia no limite das suas forças. Segurava
com a mão direita um saco de pano que trazia às costas. A mão esquerda, por sua
vez, erguia-se em sinal de rendição. Preciso de vós. De mim, ou do meu
dinheiro?, replicou Suger, recuando. Por trás dele, num ambiente de grande
austeridade, havia uma cama, uma mesa e uma arca, tudo rodeado de estantes de
livros. Procurou por entre as prateleiras qualquer coisa que usasse como arma,
mas apenas encontrou um pilão de almofariz que brandiu com ar ameaçador.
Sentiu-se quase ridículo. O homem com o manto avançou, circunspecto. Não sou
nenhum ladrão.
Suger
reparou no punhal que trazia à cintura e, mais abaixo, nas manchas de sangue na
perna esquerda das calças. A ferida devia encontrar-se mais acima e estava a
causar-lhe uma grave hemorragia. Preciso de um médico..., explicou o homem, em
resposta aos seus olhares. - Ia pedir ajuda a Saint-Victor, quando vos vi sair
da abadia. O monge de guarda disse-me quem éreis e decidi seguir-vos. Sem pedir
licença, desencostou uma cadeira da mesa e sentou-se, pondo o saco ao colo». In
Marcelo Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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