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O mês que durou a nova instalação foi encantador. Maria Adelaide
transformava-se e assumia uma individualidade que a extremava do resto da
família. Mas o arranjo do quintal, onde ela dava largas à sua fantasia,
delineando planos de jardinagem e arborização que mal caberiam num grande
parque, esse, então foi um poema. Eu ouvia-a embevecido, achando graça em tudo
quanto dizia e facilitando quanto podia a realização do seu sonho.
Tão
contente andava que não recusou, como até ali fizera, as lições de ler e
escrever que eu pretendia dar-lhe. Ela andara na escola mas nem as letras do
alfabeto conhecia. Nessa fase é que lhe descobri o inexaurível fundo de
superstição em que a sua alma assentava, e até nisso lhe achava chiste: sonhar
com flores eram penas remediadas; excrementos, dinheiro certo; as mãos dentro
de água, lágrimas, etc. Uma vez, antes de nos deitarmos, eu queria que se fosse
pentear e repartisse o cabelo em bandós, mas ela recusou porque era de noite e
não sabia se o pai andava no mar, o que seria de mau agoiro. Uma vizinha dos
Fumeiros, andando o marido na lancha, fora da barra, pôs-se a pentear uma
noite, e apenas atirava à rua o molhinho de cabelos caídos, vem uma refega de
vento que por pouco não mete a porta dentro. Nesse mesmo instante o marido caía
no mar e por pouco não se afoga...
Também
se não devem despejar os cântaros da cantareira quando há em casa algum doente
em perigo de vida. As almas, tão depressa largam os corpos, e antes de seguir
ao seu destino, precisam de água pronta para se lavar, e preferem a água dos
cântaros por serem fundos. Outra mulher, também dos Fumeiros, estando o marido
agonizante, despejou, de propósito, a água que havia em casa, deixando apenas
uma gota na bacia do lavatório. Morreu o marido e logo ouviu ruído no quarto do
lavatório: foi ver e achou tudo em volta salpicado de água, sem que lá
estivesse alguém...
Bairro
dos pescadores
A
respeito destas crendices Maria Adelaide não admitia dúvidas, e se eu delas
zombava, a sua testa curta, de cinco pontas, enrugava-se, com uma expressão
obstinada que a tornava sombria, opaca, e os recortes perdiam toda a graça como
inestético desenho tosco. Mas eu não teimava. Uma grande ternura me invadia o
coração à lembrança de que a pobrezinha sofrera frios e fome e andara descalça
e levara, sem dó, pancadas da mãe, e mais da mestra naquela escola de torturas
onde nada aprendera e onde as lunetas da professora, sábia e solerte, a
espavoriam. Agora era ela que sustentava generosamente os seus, matando-lhes
fomes e frios, e a ternura penetrava-me ainda mais fundo à lembrança dos seus
primeiros arranjos, no seu primeiro quarto: a cómoda pobre mas vistosa; a cama
fofa, larga e limpa, e o aroma especial que ali pairava e que era natural do
seu próprio corpo, da sua própria carne...
E os
pitorescos episódios da sua meninice. A miúdo referia-se a uma rapariga que
fora sua vizinha, era muito má e gostava de morder nas companheiras. E contava:
uma vez estava ela à porta de casa, a armar uma loja em cima de uma cadeira com
muitas coisas já em ordem: conchas de coquinhas, latas velhas de sardinhas,
dois fundos de copos, e um grande ramo de loiros, quando eu chego e digo: Francisca,
deixa-me brincar contigo. Se quiseres vai buscar pão... Corri a casa: mãe,
dê-me um pedacinho de pão para ir brincar com a filha da vizinha Antónia. Pão a
estas horas, moça? O que tu precisas é uma boa data de açoites. Volto à
Francisca: a mãe não me dá pão, mas tu deixas-me brincar, deixas? Mas ela,
muito má, responde: não, não e não; se quiseres traz pão. E a mim deu-me logo
uma grande raiva; emborco a cadeira com toda a loja e atiro o ramo de loiros
para a lama da regueira. Então a moça atira-se a mim e prega-me uma mordedela
que me fez ver as estrelas e de que ainda aqui tenho o sinal. Fujo para casa
mas daí a nada já ela lá estava com a sua mãe a queixar-se à minha de mim.
Tiveram as duas uma assanhada guerreia de língua, mas quando tudo serenou
apanhei uma sova de sapato de que me hei-de lembrar toda a minha vida... O que
estas historietas me entretinham!» In Manuel Teixeira-Gomes, Maria Adelaide,
1938, Romances Portugueses, Obras Primas do século XX, Coordenação de Davis
Mourão-Ferreira, Círculo de Leitores, Cortesia da Livraria Bertrand, 1986.
Cortesia de
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