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«(…)
O castigo que se lhes dá é dobrarem-se-lhes os tormentos que padecem. E eu não
sei que antipatia tem a fortuna com a poesia, que tão pouco favorece os poetas
apesar de ser tão aplaudida por eles, e que simpatia tem a poesia com a miséria
e a pobreza, que não houve professor seu, por mais talentoso que fosse, que não
acabasse na maior miséria. E por isso, com muita razão, está naquele canto o
pai de Ovídio a açoitá-lo, por este fazer versos, mas enquanto leva com o
chicote, promete, em verso, emendar-se, porque é tal a doença da poesia, que,
por mais que procurem os génios que a professam deixá-la, não se podem livrar
dela.
Não
tinha o Diabinho acabado de dizer as razões referidas, quando o Soldado viu
muitos homens montados em mulas, vestes longas, com anéis de bispos e luvas
fechadas nas mãos, vindo a fugir de uma grande multidão de gente que os seguia,
dizendo-lhes: esperai, infames verdugos da morte, que vós pagareis aqui o que
nos destes a beber com tantas sangrias e beberagens! E o pior foi que, quando
estávamos a morrer, vocês diziam-nos que estávamos sãos, e por isso
descuidávamos do arrependimento da nossa salvação. E, por nos chegar a morte de
repente, não podemos tratar dele. São vocês, malditos, os responsáveis por
termo vindo para aqui com este epigrama: e assim com razão pagais, com pena
e rigor tão forte, serem na vida e na morte gadanhas universais.
Seguiam
também este grupo, mais dois tumultos de gente, uns atirando-lhe com redomas,
almofarizes e espátulas, e outros com violas e jogos de tábuas. Os primeiros
diziam-lhes: falsos Galenos, vós haveis de pagar por terem sido o instrumento
da nossa perdição com a porcaria das vossas receitas! Já os segundos diziam que
eles tinham a culpa das inumeráveis execuções resultantes das suas sangrias. Não
ignorou o soldado Peralta que os cavaleiros nas mulas eram médicos e os das
redomas e guitarrinhas barbeiros e boticários, e por isso não perguntou nada ao
Diabinho, mantendo-se a ver no que dava aquela revolta. Quando apanharam todos
aos doutores, deitaram-nos das mulas abaixo e arrastaram-nos por uns metros;
depois deram aos boticários asquerosas beberagens e aos barbeiros fizeram
muitas sangrias com lancetas de fogo ardentíssimo.
Ocupado
estava o Soldado a ver estas coisas, quando apareceu outra grande multidão de
gente, uns com sovelas e outros com tesouras nas mãos, dando uns nos outros
soveladas e tesouradas, fazendo uma barafunda de todos os diabos; e a causa da
disputa era sobre quem tinham sido na vida mais mentirosos. E, como os das
sovelas eram sapateiros e os das tesouras alfaiates, não se atreveram os
demónios que os acompanhavam a resolver a questão, limitando-se a dizer-lhes
este quarteto: destes, por ser singular o mentir pelo seu prazer, podemos
nós aprender a mentir e a enganar.
E
logo atrás desses demónios viu o Soldado que estavam outros maiores e traz
desses ainda outros tantos, que traziam pessoas de rasto e lançavam-nas num
lago de água suja, fedorenta e turva, para que bebessem nele a mesma porcaria
que tinham posto nos vinhos que venderam por serem taberneiros. Os taberneiros
gritavam para que não os lançassem dizendo que o vinho não merecia tão grande
castigo pois ia assim baptizar-se e fazer-se cristão; e os demónios em paga de
uma tão boa vontade, como eram missionários baptizantes de Baco,
respondiam-lhes: bebei nessa eternidade, velhacos de infame ser, dessa água
mais quantidade que a que fizestes beber aos homens contra a vontade!» In
António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A
Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN
978-989-817-496-3.
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