segunda-feira, 10 de abril de 2017

Pedro IV. A História não Contada. Paulo Rezzutti. «Apesar dos diversos alertas de Valdirene ao telefone, informando que o corpo estava todo revirado no caixão, nada me havia preparado para aquela manhã»

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Um Morto e Quatro Funerais
«O Pedrão é nosso!, exclamou certo funcionário da cripta imperial, localizada abaixo do Monumento à Independência, no bairro paulistano do Ipiranga, ao ter a certeza de que o sarcófago de granito verde que protegera durante anos não estava vazio. Havia realmente algo lá dentro, ao contrário da descrença exteriorizada por um taxista que conduzira um fotógrafo até lá: você vai fazer o quê lá em baixo? Não tem nada lá, não! Não era apenas o Pedrão, que estava lá, mas também os demais defuntos imperiais: dona Leopoldina e dona Amélia. Muito além de encontrar as medalhas de Pedro, o trabalho de exumação, estudo e preservação dos restos mortais dos primeiros imperadores do Brasil, capitaneado pela arqueóloga Valdirene Carmo Ambiel, ajudou a lembrar que as personagens da nossa história foram, um dia, de carne e osso. A identificação pelo funcionário da cripta daquilo que esta efectivamente guardava deixou-o mais perto do que jamais estivera da heróica personagem retratada no quadro Independência ou Morte, do pintor Pedro Américo.
O mito, o herói da independência, transformou-se no Pedrão, um homem cujos restos mortais, posteriormente exibidos nos jornais do Brasil e do mundo, nos lembram de que todos retornaremos ao pó. São raros os biógrafos que podem dar-se ao luxo de dizer que conheceram pessoalmente o seu biografado morto há mais de cem anos sem irem parar a um hospício. como membro da equipa de Valdirene Ambiel, tive a oportunidade de ver Pedro em algumas ocasiões. como na exumação de dona Leopoldina, em Fevereiro de 2012, também fui convidado para estar presente na cripta imperial quando da abertura do sarcófago do primeiro imperador, em 4 de Abril de 2012, três dias antes de se completarem 181 anos da sua abdicação ao trono brasileiro.
Pela experiência obtida com a abertura da urna da imperatriz, com padres, membros da família imperial, gente subindo e descendo de um tablado periclitante para ver os restos mortais, preferi não sair na foto oficial e ter um momento de maior intimidade com o meu biografado. Afinal, para mim ele já era o Pedrão muito antes de o encontrar face a face. Eu tinha trabalhado com as cartas inéditas enviadas por ele à sua amante, a marquesa de Santos, por mim localizadas num museu nova-iorquino no ano de 2010. Conheço a sua letra e, baseado na história factual, sei quando mente ou fala a verdade nas cartas. Até aprendi a distinguir, pela forma da escrita e pela paixão, quando atingia algum pico abortado de epilepsia. Aquele imperador de espada erguida, cortando os laços entre Brasil e Portugal, já era para mim o Demonão (Demonão e Fogo-Foguinho em formas que Pedro I do Brasil usava para assinar as suas cartas à amante, a marquesa de Santos), quase um membro falecido da família, cujas histórias são tantas que é como se tivéssemos acabado de o ver em carne e osso, a dobrar a esquina.
Apesar dos diversos alertas de Valdirene ao telefone, informando que o corpo estava todo revirado no caixão, nada me havia preparado para aquela manhã. O ataúde fora retirado do sarcófago e colocado sobre o antigo altar da capela. O fundo estava praticamente a desfazer-se, o corpo encontrava-se todo desconjuntado, o crânio olhava para dentro do caixão. No meio de uma massa de terra compacta (aparentemente, segundo deduções preliminares, a terra seria da região do Porto, cidade à qual legou o seu coração e onde sofreu longo e tormentoso cerco pelas tropas do irmão), podíamos ver partes de ossos e medalhas. Tinha-se a impressão de que, em alguma das exumações anteriores, haviam simplesmente atirado de qualquer maneira o conteúdo de um caixão para o outro, como se fosse entulho. Ele está todo sujo e partido, pensei, como quando estava vivo. Pedro IV sempre foi muito activo, adorava exercitar-se, nadava nu nas praias de Botafogo e Flamengo sem se importar nada com a opinião dos moradores locais. Ao contrário dos dias de hoje, os banhos de mar eram em geral recomendados como terapia, mas Pedro praticava a natação como exercício para o corpo. Pesquisas revelaram que a sua altura seria de 1,66 a 1,73 m, pouco maior que a média dos homens da época. Ele tinha tórax e ombros largos, braços fortes e mãos grandes». In Paulo Rezzutti, Pedro IV, A História não Contada, O Homem Revelado por Cartas e Documentos Inéditos, 2015, Casa das Letras, 2016, ISBN 978-989-741-495-4.

Cortesia da Cdas Letras/JDACT