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Um
Morto e Quatro Funerais
«O Pedrão
é nosso!, exclamou certo funcionário da cripta imperial, localizada abaixo do
Monumento à Independência, no bairro paulistano do Ipiranga, ao ter a certeza
de que o sarcófago de granito verde que protegera durante anos não estava vazio.
Havia realmente algo lá dentro, ao contrário da descrença exteriorizada por um taxista
que conduzira um fotógrafo até lá: você vai fazer o quê lá em baixo? Não tem nada
lá, não! Não era apenas o Pedrão, que estava lá, mas também os demais
defuntos imperiais: dona Leopoldina e dona Amélia. Muito além de encontrar as medalhas
de Pedro, o trabalho de exumação, estudo e preservação dos restos mortais dos primeiros
imperadores do Brasil, capitaneado pela arqueóloga Valdirene Carmo Ambiel,
ajudou a lembrar que as personagens da nossa história foram, um dia, de carne e
osso. A identificação pelo funcionário da cripta daquilo que esta efectivamente
guardava deixou-o mais perto do que jamais estivera da heróica personagem
retratada no quadro Independência ou Morte, do pintor Pedro Américo.
O mito,
o herói da independência, transformou-se no Pedrão, um homem cujos
restos mortais, posteriormente exibidos nos jornais do Brasil e do mundo, nos lembram
de que todos retornaremos ao pó. São raros os biógrafos que podem dar-se ao luxo
de dizer que conheceram pessoalmente o seu biografado morto há mais de cem anos
sem irem parar a um hospício. como membro da equipa de Valdirene Ambiel, tive a
oportunidade de ver Pedro em algumas ocasiões. como na exumação de dona Leopoldina,
em Fevereiro de 2012, também fui convidado para estar presente na cripta
imperial quando da abertura do sarcófago do primeiro imperador, em 4 de Abril de
2012, três dias antes de se completarem 181 anos da sua abdicação ao trono brasileiro.
Pela
experiência obtida com a abertura da urna da imperatriz, com padres, membros da
família imperial, gente subindo e descendo de um tablado periclitante para ver os
restos mortais, preferi não sair na foto oficial e ter um momento de maior intimidade
com o meu biografado. Afinal, para mim ele já era o Pedrão muito antes
de o encontrar face a face. Eu tinha trabalhado com as cartas inéditas enviadas
por ele à sua amante, a marquesa de Santos, por mim localizadas num museu nova-iorquino
no ano de 2010. Conheço a sua letra e, baseado na história factual, sei quando
mente ou fala a verdade nas cartas. Até aprendi a distinguir, pela forma da
escrita e pela paixão, quando atingia algum pico abortado de epilepsia. Aquele imperador
de espada erguida, cortando os laços entre Brasil e Portugal, já era para mim o
Demonão (Demonão e Fogo-Foguinho em formas que Pedro I do Brasil usava
para assinar as suas cartas à amante, a marquesa de Santos), quase um membro falecido
da família, cujas histórias são tantas que é como se tivéssemos acabado de o ver
em carne e osso, a dobrar a esquina.
Apesar
dos diversos alertas de Valdirene ao telefone, informando que o corpo estava todo
revirado no caixão, nada me havia preparado para aquela manhã. O ataúde fora retirado
do sarcófago e colocado sobre o antigo altar da capela. O fundo estava praticamente
a desfazer-se, o corpo encontrava-se todo desconjuntado, o crânio olhava para
dentro do caixão. No meio de uma massa de terra compacta (aparentemente,
segundo deduções preliminares, a terra seria da região do Porto, cidade à qual
legou o seu coração e onde sofreu longo e tormentoso cerco pelas tropas do
irmão), podíamos ver partes de ossos e medalhas. Tinha-se a impressão de que,
em alguma das exumações anteriores, haviam simplesmente atirado de qualquer
maneira o conteúdo de um caixão para o outro, como se fosse entulho. Ele está
todo sujo e partido, pensei, como quando estava vivo. Pedro IV sempre
foi muito activo, adorava exercitar-se, nadava nu nas praias de Botafogo e Flamengo
sem se importar nada com a opinião dos moradores locais. Ao contrário dos dias de
hoje, os banhos de mar eram em geral recomendados como terapia, mas Pedro praticava
a natação como exercício para o corpo. Pesquisas revelaram que a sua altura seria
de 1,66 a 1,73 m, pouco maior que a média dos homens da época. Ele tinha tórax e
ombros largos, braços fortes e mãos grandes». In Paulo Rezzutti, Pedro IV, A
História não Contada, O Homem Revelado por Cartas e Documentos Inéditos, 2015,
Casa das Letras, 2016, ISBN 978-989-741-495-4.
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