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As aias partiam de Coimbra para Leão e Laredo, onde as famílias viriam, ela era
encontrada em Ourém para servir a que fugazmente fora rainha de Portugal.
Levada à sua presença não via rainha nenhuma, só uma mulher formosa desfeada
pelo desgosto, com os olhos inchados de chorar. Daí a dias chegava Iñigo,
futuro alcaide da vila, para fazer crer aos que resistiam ao infante usurpador
que dona Mecia não estava cativa senão da sua vontade. Até escolhera um nobre
da Vizcaya para governar o castelo da que era vila sua. O povo, escondido pelas
furnas, temeroso dos vendavais da guerra, passava a acreditar no que se vinha
repetindo à boca calada: a bruxa enfeitiçou el-rei e agora vira-lhe as
costas. Mas o tempo em Ourém seria escasso. Em breve era obrigada a viajar sem
que ninguém suspeitasse. Era a hora de assumir o curador do reino recomendado
pelo papa, não havia tempo para dedicar ao sumiço da rainha. E lá partia uma
manhã fria de Inverno, acompanhada pela nova aia que já muito bem lhe queria.
Também, de que servia querer ficar na sua terra, junto dos seus? O pai baixara
à gafaria mais próxima, a mãe e os irmãos, menores do que ela, catavam a bolota
e os bagos da videira para não morrerem à fome. Partisse a filha, e haveria
esperança de salvação para todos.
Os
mais novos ainda foram a tempo. Recebeu-os daí a um ano e meio em terras de Villafáfila,
depois de casar com Ferrán Pérez, porteiro de dona Mecia. Os pais acabaram os
dias na gafaria de Coimbra, a melhor e mais humana do reino, onde criavam patos
e vendiam ovos. Limpa as lágrimas rebeldes. A tristeza do passado pode ser
pesado fardo se não for aliviada com uma vida ditosa. Levanta-se em direcção à
parede, sob a janela do quarto. Apura o ouvido, distingue a voz miúda da ama a
encadear a conversa. Só muito de longe-em-longe Pelayo se atreve a interromper,
para controlar o caudal de um relato adormecido.
Memórias.
Poalha de ouro do tempo
Era
uma tarde na corte da rainha dona Beatriz da Suábia... De dona Berenguela, quereis
dizer, não é, senhora? De dona Beatriz, sei o que digo. A rainha-mãe nunca me
viu com bons olhos, ou não sabeis que minha avó, Inez lñiguez Mendoza, pariu
minha mãe no ano em que dona Berenguela se casou com meu avô, rei de León? Padre
Pelayo mastiga em seco. Talvez dona Mencia esteja mais lúcida do que Elvira lhe
fizera crer. O melhor é deixá-la falar à vontade, diga o que disser. Haverá
tempo, depois, para filtrar o sentido das palavras. Meu tio, el-rei Fernando III,
propôs à mãe que eu e minhas irmãs ficássemos com as damas de dona Isabel, a
sua Beatriz, que era sorridente e doce. Quando trouxe Sancho a Zamora, naquela Primavera
em que firmaram o tratado do Sabugal, estava lá eu com a rainha e o infante Afonso.
Nessa altura seríeis uma donzela...
Ia
fazer dezasseis anos, estava casada com Alvar há mais de dois. Então vosso
esposo também lá estava convosco. Não, partira essa manhã para Jérez de La
Frontera com Diego Pérez Vargas, que então armou cavaleiro. E Sancho acabava de
chegar, dizíeis vós... Sancho aparecia com meia dúzia de privados. Era rei e em
nada o semelhava, tão tímido, tao modestamente vestido. Seria ainda novo, nessa
altura.» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016,
ISBN 978-989-637-951-3.
Cortesia de
ESdeEmergência/JDACT