quarta-feira, 26 de abril de 2017

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Os mais novos ainda foram a tempo. Recebeu-os daí a um ano e meio em terras de Villafáfila, depois de casar com Ferrán Pérez, porteiro de dona Mecia»

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«(…) As aias partiam de Coimbra para Leão e Laredo, onde as famílias viriam, ela era encontrada em Ourém para servir a que fugazmente fora rainha de Portugal. Levada à sua presença não via rainha nenhuma, só uma mulher formosa desfeada pelo desgosto, com os olhos inchados de chorar. Daí a dias chegava Iñigo, futuro alcaide da vila, para fazer crer aos que resistiam ao infante usurpador que dona Mecia não estava cativa senão da sua vontade. Até escolhera um nobre da Vizcaya para governar o castelo da que era vila sua. O povo, escondido pelas furnas, temeroso dos vendavais da guerra, passava a acreditar no que se vinha repetindo à boca calada: a bruxa enfeitiçou el-rei e agora vira-lhe as costas. Mas o tempo em Ourém seria escasso. Em breve era obrigada a viajar sem que ninguém suspeitasse. Era a hora de assumir o curador do reino recomendado pelo papa, não havia tempo para dedicar ao sumiço da rainha. E lá partia uma manhã fria de Inverno, acompanhada pela nova aia que já muito bem lhe queria. Também, de que servia querer ficar na sua terra, junto dos seus? O pai baixara à gafaria mais próxima, a mãe e os irmãos, menores do que ela, catavam a bolota e os bagos da videira para não morrerem à fome. Partisse a filha, e haveria esperança de salvação para todos.
Os mais novos ainda foram a tempo. Recebeu-os daí a um ano e meio em terras de Villafáfila, depois de casar com Ferrán Pérez, porteiro de dona Mecia. Os pais acabaram os dias na gafaria de Coimbra, a melhor e mais humana do reino, onde criavam patos e vendiam ovos. Limpa as lágrimas rebeldes. A tristeza do passado pode ser pesado fardo se não for aliviada com uma vida ditosa. Levanta-se em direcção à parede, sob a janela do quarto. Apura o ouvido, distingue a voz miúda da ama a encadear a conversa. Só muito de longe-em-longe Pelayo se atreve a interromper, para controlar o caudal de um relato adormecido.

Memórias. Poalha de ouro do tempo
Era uma tarde na corte da rainha dona Beatriz da Suábia... De dona Berenguela, quereis dizer, não é, senhora? De dona Beatriz, sei o que digo. A rainha-mãe nunca me viu com bons olhos, ou não sabeis que minha avó, Inez lñiguez Mendoza, pariu minha mãe no ano em que dona Berenguela se casou com meu avô, rei de León? Padre Pelayo mastiga em seco. Talvez dona Mencia esteja mais lúcida do que Elvira lhe fizera crer. O melhor é deixá-la falar à vontade, diga o que disser. Haverá tempo, depois, para filtrar o sentido das palavras. Meu tio, el-rei Fernando III, propôs à mãe que eu e minhas irmãs ficássemos com as damas de dona Isabel, a sua Beatriz, que era sorridente e doce. Quando trouxe Sancho a Zamora, naquela Primavera em que firmaram o tratado do Sabugal, estava lá eu com a rainha e o infante Afonso. Nessa altura seríeis uma donzela...
Ia fazer dezasseis anos, estava casada com Alvar há mais de dois. Então vosso esposo também lá estava convosco. Não, partira essa manhã para Jérez de La Frontera com Diego Pérez Vargas, que então armou cavaleiro. E Sancho acabava de chegar, dizíeis vós... Sancho aparecia com meia dúzia de privados. Era rei e em nada o semelhava, tão tímido, tao modestamente vestido. Seria ainda novo, nessa altura.» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT