domingo, 16 de abril de 2017

A Musa em Férias, Idílios e Sátiras. Guerra Junqueiro. «Quando uma barreira é alta, vai num galope desfeito, enterra-lhe a espora, e salta o muro do Preconceito»

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A Musa
I

Das suas tranças douradas

nem uma só é postiça:

é casta como as espadas,

é recta como a justiça.


Não tem o lânguido jeito

das musas cor das opalas,

que andam doentes do peito

e fazem furor nas salas.


Traz à cinta cartucheira

e traz arma a tiracolo;

é alegre vivandeira

dos demagogos... D’Apolo.


Às comendas diamantinas

prefere os lírios nevados,

e as blouses garibaldinas

às becas dos advogados.


Não procura o beneplácito

da corte ou da Santa Sé;

depois de jantar com Tácito,

vai cear com Rabelais.


Às grandes festas hipócritas

do mais brilhante palácio

prefere a aurea mediocritas,

o encanto do velho Horácio.


Detesta graves pedantes;

ama o justo, o belo, o nu,

tem relação com Cervantes,

e trata Voltaire por tu.


Persegue, apupa, destroça

a mediocridade ignara,

com a farinha da troça

enfarinhando-lhe a cara.


Riso ligeiro nos lábios,

gosta de ir, pé ante pé,

quebrar na nuca dos sábios

O ovo dum triolet.


Se avista um analfabeto

inchado, com grandes famas,

pede aos cortiços do Himeto

as vésperas dos epigramas.


Cultiva de noite e dia,

da melhor forma que pode,

as ortigas da Ironia

junto aos plátanos da Ode.


Às vezes, mesmo por graça,

ela atropela sem pena

Filinto Elísio que passa

de braço dado a Lucena.


E, se gritam, não faz caso,

vai-se rindo alegremente

da vereação do Parnaso,

de que é Boileau presidente.


Corre pelo mundo fora

no seu divino alasão;

é como se fosse a aurora

montada sobre um trovão!


Quando uma barreira é alta,

vai num galope desfeito,

enterra-lhe a espora, e salta

o muro do Preconceito.


Sobe ao píncaro dos mastros

da inspiração, e lá cima

ao eixo fulvo dos astros

prende os trapézios da rima.


Levando na mão a esfera

estrelada do universo,

faz prodígios de quimera

na corda bamba do verso.


Já levantou barricadas

no Parnaso lusitano,

desempedrando as calçadas

dos versos para piano.


Vai neste caminho escuro

lutando, cantando e rindo;

senta-se junto ao Futuro

na extrema esquerda do Pindo».
In Guerra Junqueiro. A Musa em Férias


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