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e wikipedia
«Muitas vezes, à janela, nas noites de luz baça,
quando a Terra, em redondo, parece a boca dum cesto enorme, suspenso ao
firmamento pelo aro luminoso da Via Láctea, em que tudo soçobra, homens, coisas
e loisas, metia a mão no seio a procurar. Achava espinhos, remorsos, uma que
outra flor imarcescível, e a gente que aí vai, alguma celestial e sobre-humana,
da muita que eu via andando, andando Estrada de Santiago fora». In Aquilino
Ribeiro, 1992
A Via Láctea
«Os primeiros
raios do sol brindavam o céu azul com uma luminosidade amarelada, naquele início
de Setembro, enquanto pássaros sossegados faziam longos círculos com os bicos apontados
para o chão em busca de algum pequeno ser que não teria mais o direito de participar
dos quotidianos festejos da vida. O peregrino esgueirou-se por uma pequena mata
e se escondeu entre os ramos de folhagens e espinheiros que sobreviviam à
sombra das árvores com o pouco sol que lhes sobrava. Agia como se já tivesse
estado ali antes e conhecesse a antiga trilha que acompanha a borda do
precipício. Na verdade, não era bem um precipício, mas um barranco íngreme que
se inclinava até ao fundo do vale, onde se encontrava com o silencioso riacho
encoberto pela mata ciliar.
Sabia
que o homem do burrico ia passar por ali. Mandara a mulher na frente e vinha
conduzindo a filha, uma menina bonita de doze anos, montada no animal. Fazia
esforços imensos para não se distrair com os pensamentos que o torturavam,
quando se lembrava da menina. Aquela coisinha bonita, tenra como uma folha de
alface, mas já entrando na juventude, logo ia ficar à sua mercê, sozinha. Procurava,
no entanto, controlar os seus instintos porque a Ordem lhe dera uma missão e
tinha de cumpri-la. Conhecia a severidade do castigo quando um membro falhava. Ele
próprio ajudara a supliciar alguns que não seguiram correctamente as instruções
e tiveram morte horrível. Concentrou-se e manteve os ouvidos atentos para o
ruído característico dos passos do burrico, pois não tinha certeza se
conseguiria vê-los através das folhagens quando estivessem chegando. O Caminho
fazia uma longa e suave curva para vencer o morro até onde ele estava. Esperava
pacientemente entre os arbustos, com o enganoso cajado que tinha na base uma
lâmina de ferro forte e afiada. Ninguém desconfiaria dele, porque estava
vestido como um peregrino comum: bermudas, botinas, mochila e um gorro que
encobria as orelhas, o pescoço, e ajudava a esconder o rosto. A vieira sobre a
mochila e o cajado completavam a camuflagem de um piedoso peregrino dirigindo-se
para o túmulo de São Tiago, em Compostela.
De
repente, ouviu arfar um animal. Ajeitou-se com cuidado e olhou por entre os
vãos das folhas. Conseguiu ver o burrico, cansado e suado, que subia o monte com a sua carga,
levantando para cima e para baixo a enorme cabeça, como se procurasse dar ritmo
aos passos. Era o momento de sair dali e andar meio devagar como se estivesse
economizando energia para subir o resto dos Pirenéus, porque o normal seria
estar na trilha quando o outro aparecesse. Sentiu o animal mais próximo e, como
seria natural que qualquer um fizesse, olhou de esguelha para trás e subiu a
saliência do Caminho pelo lado de cima do barranco onde ficou em pé, para dar
passagem, mas com a ponta do cajado escondida numa pequena touceira de capim. Era
o mesmo homem que espreitara antes: um espanhol, nos seus quarenta anos, barba
curta, espessa e preta, um tipo forte, atlético; parecia mais disposto que o
animal. Foi bom ter pensado em tudo com detalhes. Precisava dar a aparência de
um acidente, como se o burrico se tivesse assustado com alguma coisa e caído no
barranco». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009,
ISBN 978-856-150-127-3.
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