terça-feira, 13 de março de 2012

A Cidade Antiga. Estudo sobre o Culto, o Direito da Grécia e de Roma. «Temia-se menos a morte do que a privação de sepultura. Porque na sepultura está o repouso e a bem-aventurança eterna. Não nos devemos surpreender quando vemos os atenienses a mandarem matar aqueles generais que, depois de uma vitória no mar, negligenciaram o enterramento dos seus mortos»

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Crenças sobre a alma e sobre a morte
«E deste motivo vieram-nos as crenças nas almas do outro mundo. Toda a antiguidade se persuade de que, sem sepultura, a alma vive desgraçada e que só peto seu enterramento adquiria a felicidade para todo o sempre. Não era pelo aparato da dor que se realizava a cerimónia fúnebre, mas para repouso e felicidade do morto.
Atentemos bem não bastar que o corpo fosse depositado na terra. Era ainda preciso observarem-se certos ritos tradicionais e pronunciarem-se determinadas fórmulas. Encontramos em Plauto a história de uma alma do outro mundo; história de certa alma andando forçosamente errante, porque tinham enterrado o seu corpo sem a prática dos ritos. Suetónio conta-nos que, tendo sido enterrado o corpo de Calígula sem esse acto de a sua sepultura se haver feito acompanhar da cerimónia fúnebre, a sua alma andou errante e apareceu aos vivos, até ao dia em que se decidiu desenterrar o corpo e dar-lhe sepultura segundo os ritos. Estes dois exemplos revelam claramente a importância pelos antigos atribuída aos ritos e às fórmulas da cerimónia fúnebre. Uma vez que, sem eles, as almas andavam errantes e apareciam aos vivos, é porque só mediante a sua rigorosa observância se fixavam e encerravam nos túmulos. E como existiam fórmulas com esta virtude, também os antigos possuíam outras fórmulas tendo eficácia contrária: a de evocar as almas e fazê-las sair momentaneamente do sepulcro.
Pode ver-se em escritores antigos como o homem constantemente viva atormentado pelo receio de que, depois da sua morte, se não observassem tais ritos. Era isto motivo para amargas inquietações.

NOTA: Vide na “Ilíada”, Heitor pede ao seu vencedor que este o não prive de sepultura: ‘Eu te suplico de joelhos, pela tua vida, por teus pais, que não dês o meu corpo aos cães junto dos navios dos gregos; aceita o ouro que meu pai te oferecerá em abundância e entrega-lhe o meu corpo, a fim de que os troianos e troianas me concedam a minha parte nas honras da fogueira’.

Temia-se menos a morte do que a privação de sepultura. Porque na sepultura está o repouso e a bem-aventurança eterna. Não nos devemos surpreender quando vemos os atenienses a mandarem matar aqueles generais que, depois de uma vitória no mar, negligenciaram o enterramento dos seus mortos. Estes generais, discípulos dos filósofos, talvez distinguissem já entre alma e corpo, e, deste  modo, por não acreditarem que a sorte de uma estivesse 'presa da do outro, teriam assim pensado que ao cadáver tanto importaria decompor-se na terra como na água. Não tinham portanto querido arrostar com a tempestade só pela vã formalidade de recolher e enterrar os seus mortos. Mas a multidão, mesmo em Atenas, presa da velha tradição, imediatamente vem acusar estes mesmos generais de impiedade, e fá-los morrer. Se pela sua vitória estes generais haviam salvado Atenas, pela sua negligência tinham perdido milhares de almas. Os parentes dos mortos, pensando no longo suplício que estas almas viriam a sofrer, vieram ao tribunal em-trajos de luto e reclamaram vingança.

Cortesia de wikipedia

Nas cidades antigas a lei pune os grandes culpados- com um castigo desde sempre considerado terrível: a privação de sepultura. Punia-se-lhes assim a sua própria alma, infligindo-lhe um suplício quase eterno.
É preciso observar-se ter tido ainda aceitação entre os antigos outra crença sobre o destino dos mortos. Concebiam eles certa região, subterrânea também, mas infinitamente mais vasta do que túmulo, e na qual todas as almas, apartando-se dos seus corpos, vinham viver juntas, sendo as penas e as recompensas distribuídas segundo a conduta que o homem tivera durante a vida. Mas os rituais da sepultura, tais como acabamos de descrevê-los, surgem-nos em manifesto desacordo com estas outras crenças: prova certa de que na época em que esses ritos se estabeleceram não se acreditava ainda no Tártaro e nos Campos Elísios. O primeiro juízo formado por estas antigas gerações foi o de o ser humano viver no túmulo, a alma se não separar do corpo e se fixar naquela parte do solo onde estivessem enterrados os ossos. O homem não tinha nenhumas contas a prestar da sua vida anterior. Uma vez encerrado no túmulo, nada tinha a esperar, nem recompensas, nem castigos. Opinião certamente grosseira, mas a revelar, na sua infância, a noção de vida futura.
O ser que vive debaixo da terra não se encontra tão desprendido do humano que não tenha necessidade de alimento. Por isso, em certos dias do ano, se leva a refeição a cada túmulo». In A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1981.

Cortesia de LC Editora/JDACT