sexta-feira, 9 de março de 2012

Inês de Castro. Leituras. Maria Pilar del Hierro. «Toda Madrid estava ao corrente da fragilidade psíquica de Marta de Nevares e dos seus amores sacrílegos com Lope. Mas o fascínio que o dramaturgo exercia sobre os seus conterrâneos era tal que eles lhe perdoavam de bom grado as aventuras e a vida licenciosa»

Cortesia de wikipedia

Encontro com um fidalgo português
«Vélez não conseguiu esconder um sorriso. Nem o hábito conseguia evitar que Lope continuasse a interessar-se por mulheres. Umas carnes rijas, um olhar insinuante ou a fragrância de um corpo feminino relegavam todas as outras coisas para um plano secundário. Perante aquela amostra das carências óbvias de Lope, decidiu calar as suas próprias desditas e, quando o amigo o inquiriu acerca dos motivos do passeio, não o quis maçar com a narrativa dos seus pesares e limitou-se a responder: 
- Dirigia-me para a taberna do Alonso em busca de uma boa cavaqueira e de um vinho ainda melhor.
- Bom destino, louvado seja Deus! Faço-vos companhia porque a esta hora costuma estar por lá o senhor conde de Villamediana e, bem o sabeis, com ele presente, está assegurada uma conversa picante e inteligente. Pensava ir para casa, para escrever, mas o trabalho pode esperar. Tudo se recupera num par de horas e um pouco de distracção só me poderá fazer bem. 
De novo sentiu o aguilhão da inveja. Resolve-se ‘num par de horas’... E ele a precisar de meses para encontrar e desenvolver um bom tema! Porém, era óbvio que Lope também não estava muito contente. Sem receio de ser considerado indiscreto, perguntou: 
- Vejo-vos um pouco cabisbaixo. Continuais preocupado com a saúde de D. Marta?
- Sim, claro, e pela dor que sinto por não conseguir respeitar este hábito como ele merece. 
Toda Madrid estava ao corrente da fragilidade psíquica de Marta de Nevares e dos seus amores sacrílegos com Lope. Mas o fascínio que o dramaturgo exercia sobre os seus conterrâneos era tal que eles lhe perdoavam de bom grado as aventuras e a vida licenciosa. Sem se aperceber do melancólico mutismo do interlocutor, Lope entrou em confidências, falou do seu arrependimento sincero por não cumprir a castidade a que os votos o obrigavam, referiu a preocupação pelo bem-estar dos filhos gerados pela sua ligação amorosa, divertiu-o com incidentes domésticos... Durante aquele trajecto tão curto falou tanto que, por momentos, até conseguiu que Vélez se esquecesse das preocupações que o atormentavam.

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Tão entretidos iam, um a falar e o outro a ouvir, que nem se aperceberam dos passos de um cavaleiro que os seguia, embora a uma distância respeitosa. Parecia fidalgo. Trazia uma grande capa de veludo castanho, um pouco fora de moda, que o cobria quase por completo. Dela só se destacava uma espada finamente lavrada que, ao roçar de encontro às ferragens que lhe adornavam a bota, produzia um tilintar fastidioso e monótono. Estivesse Luís mais atento e teria já notado que aquele mesmo som o acompanhava desde que saíra de casa de Sánchez de Vargas.
A taberna do Alonso ocupava um grande espaço no andar térreo de um velho casarão de dois pisos. No interior, os comensais podiam acomodar-se em compridos bancos de madeira que rodeavam seis grandes mesas. Ao fundo, separada por uma escada de três degraus, ficava a cozinha, pois era sabido que, além de beber, ali podia saborear-se, por um preço módico, uma excelente empada de carneiro e outras iguarias caseiras.
Não obstante, o principal reclame da taberna eram os seus excelentes vinhos: um magnífico tinto de Arganda, um fino Valdemoro semelhante ao que era servido no palácio e o delicado vinho de La Membrilla. Lope gostava tanto deste último que até o incluíra no título de uma das suas comédias: “El galán de la Membrilla”. Na estação calmosa Alonso também servia água de canela, uma excelente ‘aloja’ e um famoso ‘hipocrás’.
Á taberna tinha duas portas: uma dava para a praça da Aduana e pela outra acedia-se à praceta da Leña, pois que, embora seja difícil guardar uma casa com duas portas, as brigas eram frequentes e a prudência aconselhava a existência de uma via possível de fuga. Os recém-chegados sentaram-se precisamente junto de uma delas, a que dava para a praceta. Pouco depois, juntou-se-lhes Gaspar de Bonifaz, tão conhecedor das sortes da tauromaquia como entendido no desempenho do cargo de espião-mor de sua majestade, o rei Filipe IV. Uns minutos mais tarde, chegaram Damián Arias de Peñafiel, Francisco Sebastián Medrano, ambos conhecidos de Lope, e um tal Cristóbal de Tenorio, um pouco mais jovem do que os restantes companheiros de tertúlia, um homem que, dizia-se, andava sempre metido em pendências e amores.

Cortesia de wikipedia

Mal tinham encomendado as bebidas à moça que servia às mesas, recortou-se na entrada a figura miúda de Juan de Tassis, conde de Villamediana, correio-mor de el-Rei. Foi Lope o primeiro a aperceber-se da chegada do conde.
-Deus vos guarde, senhor conde, acercai-vos, pois não exagero se disser que viemos ao vosso encontro e que começávamos a ficar impacientes por não vos vermos.
- Muito boas noites a todos! - saudou o recém-chegado e, dirigindo-se a Bonifaz, continuou:
- Que nos contais, Gaspar? Ia jurar que esta tarde andastes a seguir-me. Acaso não tereis nada melhor em que trabalhar para maior honra de sua majestade el-rei Filipe?
- Como assim, senhor conde! O encontro foi fortuito. Vede, Vélez, que o nosso poeta preferido tem sempre um gracejo na ponta da língua.
-É o que me vale e foi em busca de diversão que vim até aqui. Contai-nos, pois, Juan, algum lance divertido que me faça esquecer as minhas muitas preocupações.
- Pouco posso contar-vos. Venho de tratar de um assunto de amores e não mereceria o apelido que uso se me descosesse com nomes e pormenores.
- Um trato difícil, meu amigo – interrompeu Lope -, pois, por mais que explicásseis, pouco poderíamos perceber. Sois gongórico e, como tal, usais uma linguagem obscura.
- Sempre com chalaças, amigo Lope. É verdade que a retórica e o verso culto me agradam, mas, neste caso, não quisera que se entendesse que os meus amores são tão ‘reais’.
As últimas palavras do conde foram recebidas com uma gargalhada. Corriam rumores de que ele andava de amores com uma dama de categoria, chegando os mais atrevidos a assegurar que a eleita do conde era a própria D. Isabel de Borbón, esposa de el-rei Filipe IV». In Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT