sexta-feira, 23 de março de 2012

A Matemática das Coisas. Nuno Crato. Coisas do dia-a-dia. «Dizia Eubúlides que um monte (uma duna) não se faz com um grão de areia, nem com dois, nem com cem. E que, se tivermos um grupo de grãos de areia que não é ainda um monte, não é juntando mais um grão que o obtemos. Sendo assim, juntando ainda outro grão continuamos sem um monte»


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Eubúlides, sorites e o euro
«As moedas europeias estão em circulação há tempo mais que suficiente para todos se terem habituado a reconhecê-las. Mas há muita gente que ainda as confunde. Há quem tenha dificuldade em distinguir as moedas de dois cêntimos das de cinco. E quem confunda as de 10 com as de 20, ou estas últimas com as de 50. Será culpa nossa ou de quem concebeu o sistema?
Os criadores do euro decidiram fazer as moedas de tamanho ligeiramente crescente com o seu valor. Assim, por exemplo, as de 20 cêntimos são um pouco maiores que as de 10, e as de 50 um pouco maiores que as de 20. E estas são todas construídas na mesma liga. Parece um sistema racional, mas o resultado não é o melhor.

Antigamente ninguém confundia a moeda de 50 escudos com a de 100, apesar de esta última ser mais pequena que a de 50. A lógica do tamanho crescente com o valor era aqui invertida. E estas duas moedas eram de ligas e modelos diferentes, o que evitava qualquer confusão. O princípio é seguido noutras moedas, nomeadamente nas norte-americanas. Também neste último caso, não há uma ordenação de tamanho pelo valor crescente e as diferentes ligas encontram-se salteadas, o que ajuda a distinguir as moedas. No euro, pelo contrário, as ligas agrupam moedas de valores e tamanhos adjacentes, o que não ajuda a distingui-las.

O caso relembra o “paradoxo de sorites”, formulado há mais de 23 séculos pelo filósofo grego Eubúlides. Esse contemporâneo de Aristóteles nasceu em Mileto e viveu em Mégara, onde liderou a escola filosófica do mesmo nome. Entre outros paradoxos célebres criou o de “sorites”, palavra grega que significa amontoador derivado de ‘soros’, que significa monte. Dizia Eubúlides que um monte (uma duna) não se faz com um grão de areia, nem com dois, nem com cem. E que, se tivermos um grupo de grãos de areia que não é ainda um monte, não é juntando mais um grão que o obtemos. Sendo assim, juntando ainda outro grão continuamos sem um monte. Mas isso significa, por indução, que nunca teremos um monte de areia, por mais grãos que juntemos...
No século XX, o paradoxo foi revisitado por vários filósofos, lógicos e matemáticos, desde Frege (1848-1925) e Russell (1872-1970) até a alguns lógicos contemporâneos. Uma súmula excelente do assunto encontra-se na Enciclopédia de Termos Filosóficos organizada por João Branquinho e Desidério Murcho. Um tratamento mais completo encontra-se na monografia “Vagueness”, de Williamson.

Cortesia de wikipedia

Propuseram-se várias soluções para o paradoxo. Uma via de raciocínio afirma que existem predicados vagos, tais como ‘monte de areia’, havendo uma zona de indefinição entre o que é monte e o que ainda não o é. Mas nesse caso seria necessário eliminar predicados vagos de qualquer raciocínio lógico rigoroso. A linguagem comum seria irremediavelmente paradoxal, como concluía Frege.
Outra solução consiste em negar a validade do raciocínio indutivo adoptando, por exemplo, uma lógica difusa, ‘fuzzy’, e considerando graus de verdade intermédios nas proposições. Outra solução ainda será considerar o problema como apenas uma questão de percepção. Tal como acontece com os amontoados de areia semelhantes, confundimos as moedas de 10 cêntimos com as de 20 e estas com as de 50. E, tal como acontece quando comparamos um simples molho de grãos de areia com uma duna, distinguimos perfeitamente as moedas de 10 das de 50.

Em teoria económica o problema é igualmente importante. Para construir as chamadas curvas de indiferença, por exemplo, em combinações de bens que o consumidor considere equivalentes, encontram-se problemas práticos difíceis.
O leitor, se for comprar um carro, vê alguma diferença de preço entre um que custe quinze mil euros e outro que custe quinze mil e um? É pouco provável. Mas tome cuidado, que os vendedores parecem ter estudado a “filosofia de Eubúlides”. Como não distinguimos quinze mil de quinze mil e um, nem quinze mil e um de quinze mil e dois... sem saber como, acabamos por sair do ‘stand’ com um carro muito bem equipado, mas também com uma despesa com que não contávamos». In Nuno Crato, A Matemática das Coisas, Gradiva, Sociedade Portuguesa de Matemática, Abril 2008, ISBN 978-989-616-241-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT