quarta-feira, 7 de março de 2012

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «A narração dele tem, portanto, ‘fundamento sobre a verdade’, mesmo se a tradição popular houver começado, quer na vida de “Inês”, quer na noite do seu enterro, a envolver os factos no seu manto diáfano»

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Uma pesquisa assente na leitura dos mais antigos poemas da língua portuguesa, abraçando os aspectos filológicos, poético e mítico. ‘A Saudade Portuguesa’ abriu novos caminhos à compreensão do mais enigmático dos enigmas portugueses: “a Saudade”. 

«Com respeito aos dramas de “Inês”, considero como tradição histórica não só o amor de perdição do herdeiro da coroa e o seu desenlace sangrento; mas também os seus reflexos de além-tumba. Isto é o iníquo intercâmbio dos executores portugueses da ordem régia contra expatriados castelhanos, e à tremenda vingança neles realizada. Chamo histórico também, tanto o cortejo fúnebre imponente de Coimbra a Alcobaça, como o juramento solene, ou sacro perjúrio, enunciado pelo filho de Afonso IV, depois de entronado, com relação ao seu casamento clandestino; e a configuração de “Inês”, na estátua sepulcral jazente, com coroa de rainha. Três actos consecutivos, intimamente ligados entre si e com o quarto e último: o da vingança tomada nos algozes. Actos cujo conjunto é único na história de todas as nações, e bem merece a formula de ‘grande desvairo’, cunhada por Fernão Lopes.

São os factos, numa palavra, narrados com eloquência, mas sem exageros por esse patriarca dos historiadores portugueses que, pela sua vez, se baseia em escritores mais antigos e em documentos coevos. A narração dele tem, portanto, ‘fundamento sobre a verdade’, mesmo se a tradição popular houver começado, quer na vida de “Inês”, quer na noite do seu enterro, a envolver os factos no seu manto diáfano. Fabulosa, fantasiosa é, pelo contrário, a dramática fusão e transformação dos três actos fúnebres, distanciados na realidade, em um só verdadeiramente lúgubre: “a coroação do cadáver” que fora exumado. Seis anos após o prematuro

“fim da mísera e mesquinha
que despois de ser morta, foi rainha!” 

Transformação de resto quase inevitável, e de tal intensidade poética que foi sobretudo ela que se vulgarizou dentro e fora do país, e inspirou poetas e pintores. 

Cortesia de costapinheiro

Fantasiosa também, mas sem tanto alcance, embora muito mais bela, é a lenda: que Pedro mandara colocar o túmulo de ”Inês”, não junto do seu, lado a lado, no cruzeiro de Alcobaça, como realmente fizera, mas pés contra pés, para que no momento de acordarem ao som da trombeta do Juízo Final, ambos pudessem, mais ume vez, confundir os seus olhos: os pretos de azeviche do moreno Justiceiro com os verde-claros da loira amada, por cuja tez branca corria o sangue azul, gótico, de D. Guterre, tronco dos Castros.

Fábula é grande parte do que se conta da ‘Quinta das Lágrimas’, da ‘Fonte dos Amores’, e dos canos de água que levavam a correspondência dos dois amantes, tal qual séculos antes, na Bretanha céltica, as missivas de Tristão a Isolda. Fábula é a tardia afirmação de semieruditos: que o cruel e gaguejante príncipe fora trovador e autor de certas Cantigas, de sentimentalidade pálida, convencional, cortesanesca, ao modo do século XV, ou em formas que são posteriores ainda.
De todas essas ficções, alguma parte passou aos dramas inesianos em geral; e em especial à obra de Luiz Vélez de Guevara. Conforme já disse é sobretudo a lenda lôbrega da “Coroação” que ele aproveitou. Essa constitui a última e impressiva cena da peça. 

Cortesia de vidaslusofonas 

Em poucas palavras direi como esta lenda se desenvolveu, a meu ver.
Em germe já estava nos três feitos históricos em que Pedro desabafara, rude mas sinceramente, os seus impulsos vingativos. Outros o reconheceram antes de mim.
Mas a cena, de inventiva dantesca, não desabrochou logo na primeira tentativa de narrar em verso a desdita de “Inês”. Nas relativamente curtas Trovas a modo de rimance, que devemos a um dos successores de Fernão Lopes, ao Cronista de D. João II e coleccionador do “Cancioneiro Geral”, diz ele apenas singela e criteriosamente:

Em todos seus testamentos
a decrarou por molher;
e por s'isto melhor crêr
fez dous rricos moymentos
em qu'ambos vereys jazer:
rey, rraynha, coroados,
muy juntos, nam apartados
no cruzeyro d’Alcobaça. 

Nas estrofes que precedem este trecho, Garcia de Resende conta a vingança executada em aqueles que mataram “Inês”, e alude ao facto de seus filhos serem infantes e ascendentes de reis e imperadores, em virtude de declarações e instrumentos régios com força de lei: 

Outra moor honrra direy:
como o princepe foy rrey,
sem tardar, mas muy asynha,
a fez alçar por rraynha:
sendo morta, o fez ‘por ley’ 

“Por ley!” E não exumando e coroando o cadáver, em representação teatral.
Na tragédia de António Ferreira, primeira das inesianas, e primeira europeia que trata, ao modo grego, com coros, de um assunto histórico, moderno e nacional, há igualmente na cena do fim, só vagas promessas de Pedro: 

Tu serás cá Rainha, como fôras;
(Entendo: como terias sido, se vivesses)
Teus filhos, só por teus, serão Infantes. 

Lembro a quem me ler que essa peça foi escrita antes de 1569, provavelmente em 1557, e talvez representada e publicada então, embora não se saiba hoje de impressão anterior à de 1589». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5. 

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT