Cortesia de alfarrabiodiminho e leituragulbenkian
O critério histórico
«Além de valorizadas por um estilo inconfundível, estas crónicas exprimem, como nenhumas outras, o sentimento nocional. E talvez por terem sido interpretadas como a expressão do ‘Evangelho português’, segundo a expressão do próprio cronista, as suas primeiras edições coincidiram com momentos graves da vida do nação:
- a “Crónica de D. João I” foi editada em 1644;
- as “Crónicas de D. Pedro e D. Fernando”, em 1816.
A “Crónica de D. Pedro I”, continuação da “Crónica de D. Afonso IV”, também da autoria de Fernão Lopes, como provam as frequentes remissões, já referidas, é constituída por um prólogo e quarenta e quatro capítulos, que abrangem os dez anos de reinado, de 1357 a 1367, embora mais de um terço se ocupe apenas de Pedro, o ‘Cruel’, rei de Castela, contemporâneo do ‘justiceiro’ e seu sobrinho, pois era filho de D. Maria, “a formosíssima Maria”, heroína de um dos mais conhecidos episódios de “Os Lusíadas”.
Esta crónica baseia-se fundamentalmente em fontes diplomáticas: os documentos dos livros da ‘Chancelaria de Pedro I'. E o carácter folgazão do rei, que o tornou tão popular, assim como as facetas mórbidas, acentuadas por Fernão Lopes, ao traçar o seu retrato moral, a preocupação obsessiva de fazer justiça, o temperamento impulsivo e cruel, quase sádico, como diríamos hoje, aparecem comprovadas nas ‘púbricas.escrituras’, que ainda se encontram na Torre do Tombo.
Contudo, Fernão Lopes utilizou também fontes narrativos, as quais, analisadas de acordo com um critério interpretativo e crítico, inteiramente inovador na época, são reproduzidas integralmente, ou então apenas resumidas; outras vezes, aparecem refundidas, ou completadas com elementos colhidos directamente nas fontes diplomáticas. Assim, Fernão Lopes transcreve textos da obra do cronista castelhano Pero Lópes de Ayala (1332 a 1407), ‘Cronicas de los Reyes de Castilla’, e também muito provavelmente de uma ‘estória’ sobre o ‘Justiceiro’, cuja vida teria ainda inspirado uma lenda, segundo observou Damião Peres. Mas Fernão Lopes não descurou a consulta das fontes arqueológicas, como, por exemplo, os túmulos de Pedro e D. Inês.
A inclusão de fontes narrativas muitas vezes sem indicação de autor, as ‘estórias’, redigidas por testemunhas oculares, eram anónimas, constitui uma característica do método historiográfico de Fernão Lopes, e não pode confundir-se com plágio, visto que o cronista não dissimula a origem do trabalho alheio. Esses textos, que a fim de completar a informação histórica, tão habilmente soube integrar na narração, de acordo, aliás, com a missão que lhe fora confiada: ‘poer, em crónica as estórias dos reis que em Portugal foram’ são apenas, conforme afirma, ‘garfos [que] per mais largo estilo enxertamos, segundo que cumpre’.
Efectivamente, no século XV, a função do historiador oficial consistia apenas em seriar os factos já relatados, ordenando-os numa narrativa sequente, que abrangesse cronologicamente os vários reinados. Na realização dessa tarefa, era livre de utilizar materiais alheios, fontes narrativas anónimas ou de autores conhecidos, que seriam refundidas ou incorporadas directamente na obra.
Todavia, Fernão Lopes, excedendo o que era vulgar na sua época, não só tomou uma atitude selectiva e crítica em relação às fontes narrativas, como também, aproveitando as facilidades proporcionadas pelo cargo que exercia, recorreu a fontes diplomáticas, diplomas régios, tratados, bulas, cartas, procurações, preitesias dos castelos, as quais são também sujeitas a rigorosa análise.
Assim, pelo critério com que escolhe e utiliza as fontes escritas, tanto como pela importância que atribui aos documentos do Arquivo Régio, Fernão Lopes aproxima-se da cocepção científica e crítica da História, introduzida entre nós por Alexandre Herculano. Portanto, na evolução da historiografia portuguesa, o método histórico do nosso primeiro cronista constitui uma completa inovação no final da Idade Média». In Maria Tarracha Ferreira, Crónicas de Fernão Lopes, biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1993, ISBN – 972-568-132-0.
Cortesia de M. T. Ferreira/JDACT