quinta-feira, 15 de março de 2012

FCG. Historiografia Medieval. Luís Krus. «Com este monumental empreendimento, o conde ensaiou uma nova leitura do passado e do devir do reino português: integrando-o na história peninsular da Reconquista, encontrou as chaves de uma valorizada ‘diferença’ hispânica nas origens e no superior ideal cavaleiresco manifestados pela sua nobreza guerreira…»

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«Contudo, foi nos anos 40 do sécu1o XIV, numa conjuntura em que a batalha do Salado (1340) reavivou as memórias da unidade da Cristandade Ibérica, que mais se renovou o gosto senhorial pela história. Na verdade, ainda que o passado régio tenha então sido reescrito pelos crúzios em português, na chamada “Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal”, um texto transmitido pela IV das “Crónicas Breves de Santa Cruz”, as suas obras historiográficas mais marcantes dessa época relacionam-se com o desenvolvimento da leitura senhorial da história peninsular do reino. No campo dos escritos genealógicos, essa tendência encontra-se patente em dois novos livros de linhagens surgidos entre 1340 e 1344: o “Livro do Deão” e o “Livro de Linhagens do Conde D. Pedro”.

O primeiro remete para os círculos letrados de dois grandes senhores da Sé de Braga, o arcebispo Gonçalo Pereira e o deão Martim Martins Zote, seu primo, ambos familiarizados com dirigentes das ordens religiosas militares, instituições de âmbito peninsular, onde, por esses mesmos anos, se terão produzido crónicas panegíricas da acção de antigos mestres, como parece ser o caso da “Cronica do Mestre Paio Peres Correia”, possível fonte da “Crónica da Conquista do Algarve”. Quanto ao “Livro de Linhagens”, foi elaborado pelo detentor da única casa condal então existente em Portugal, a de Barcelos: o conde Pedro Afonso, um bastardo do rei Dinis que foi genro dos senhores de Portel, linhagem, por sua vez, também muito relacionada com as ordens religiosas militares, nomeadamente a do Hospital. Oriundos de uma tal constelação senhorial, ambos os livros reconstroem, em função do prestígio fidalgo, uma história genealógica da nobreza do reino que não só remonta a épocas anteriores à da fundação de Portugal, como, no caso do texto do conde, recua até às origens bíblicas, fazendo das linhagens portuguesas as herdeiras das tradições de uma cavalaria hispânica onde entroncavam as dinastias régias peninsulares e onde confluíam e se superavam, pela transcendental guerra contra o Islão, as famas dos heróis troianos e asturianos. Ao passado da terra hispânica, o espaço de actuação dos reis e dos nobres da Reconquista, dedicou o conde de Barcelos a “Crónica Geral de Espanha de 1344”, nela fundindo, sob a influência da historiografia castelhana neo-isidoriana, transmitida através de uma tradução para português (‘Versão Galaico-Portuguesa da Crónica Geral de Espanha’) textos genealógicos (uma variante do “Liber Regum Navarro”) e crónicas, tanto monásticas (“Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal”), como de iniciativa fidalga (“Crónica do Mouro Rasis”).

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Com este monumental empreendimento, o conde ensaiou uma nova leitura do passado e do devir do reino português: integrando-o na história peninsular da Reconquista, encontrou as chaves de uma valorizada ‘diferença’ hispânica nas origens e no superior ideal cavaleiresco manifestados pela sua nobreza guerreira, competindo aos reis lusos as manifestações de solidariedade e de reconhecimento feudal capazes de permitir e de valorizar a cruzadística missão dos fidalgos portugueses. Passada uma geração, a refundição de 1380-1383 do “Livro de Linhagens do Conde D. Pedro”, feita em memória de Álvaro Gonçalves Pereira, prior da ordem do Hospital, acentuou e extremou toda esta concepção senhorial do passado português. Ao reivindicar para os fidalgos das ordens religiosas militares do reino a condição de vanguarda da cavalaria hispânica, tornou extensível a toda a nobreza portuguesa o estatuto de garante das tradições em que se baseavam o prestígio e a grandeza de Portugal, legitimando-lhe, desse modo, um vigilante e decisivo protagonismo na vida política do país, tal como o desenvolveu a biografia de Nuno Álvares Pereira contida na “Crónica do Condestabre (1431-1433)”.

Contudo, e apesar deste último texto, o discurso historiográfico senhorial tinha perdido intensidade e oportunidade política desde a crise de 1383-1385, uma vez que se baseava na tese do prestígio das origens peninsulares, quando, no país real, por ocasião da guerra da independência contra a anexação castelhana, se despoletavam as primeiras manifestações de um ainda incipiente sentimento nacional. Foi, aliás, neste contexto que emergiu uma historiografia inequivocamente suscitada e apoiada pela coroa, preocupando-se em legitimar pelo passado a ruptura dinástica provocada pela subida ao trono de D. João I [...]». In Luís Krus, Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, organização e coordenação de Giulia Lanciani e Giuseooe Tavani, Lisboa, Editorial Caminho, 1993, Fundação C. Gulbenkian, 1997.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT