sábado, 10 de março de 2012

Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. António Quadros. «Não podemos admirar-nos se os seus principais surtos criadores surgiram no período dos Filipes e na Restauração, no Liberalismo e no pós-Liberalismo, nas convulsões finais do regime monárquico e nas primeiras desilusões da República, tanto em Portugal como no Brasil, tendo havido também um ressurgimento da temática sebastianista…»

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Breve Antelóquio
«É na poesia que o sebastianismo, como mito, melhor e mais profundamente se exprime. A poesia, a ‘poiesis’ criadora dos Gregos, é aforma natural de todo o simbolismo profético, onde se projectam não só o consciente, mas sobretudo o inconsciente dos poetas: 
  • o “inconsciente individual” (revelando sempre um intimismo autobiográfico) e principalmente, neste caso,
  • o “inconsciente colectivo” (estabelecendo a comunicação entre o indivíduo-expressor e a colectividade, conforme a teoria de Jung).
Neste último sentido, podemos dizer que toda a poesia mitogénica, como a sebastianista, representa, a um nível profundo, a psicologia e a teleologia de um povo; o poeta é um órgão de ressonâncias arcaicas e subliminais, trazendo à tona um mundo submarino mas real. Um mito como o sebastianista expande-se e recria-se naturalmente em épocas-fronteira de transição, de desequilíbrio, de desorientação ou mesmo de queda, dando corpo poético a insatisfações e aspirações nacionais.
Não podemos, pois, admirar-nos se os seus principais surtos criadores surgiram no período dos Filipes e na Restauração, no Liberalismo e no pós-Liberalismo, nas convulsões finais do regime monárquico e nas primeiras desilusões da República, tanto em Portugal como no Brasil, tendo havido também um ressurgimento da temática sebastianista e até curiosas expressões de sebastianismos de esquerda e de direita nos últimos anos do Estado Novo e nas novas ilusões e desilusões do pós-25 de Abril.
Principiemos, mas não sem antes distinguir as três formas históricas do sebastianismo:
  • o pré-sebastianismo cifrado e profético, anterior a D. Sebastião (mas só depois reconhecido como tal...);
  • o sebastianismo contemporâneo de D. Sebastião (ainda sem todas as características do mito, mas já com algumas delas);
  • e o sebastianismo posterior à morte de D. Sebastião (que da esperança no seu regresso físico depressa passará para o nível fantástico e sagrado do mito).

Cortesia de porterrassefarade

Na realidade, o que nunca entenderam os historiadores positivistas, os racionalistas da razão abstracta e os sociólogos das superfícies, a figura histórica do rei foi sempre um pretexto, foi afinal o ‘meio’ de canalização e projecção não só de uma profecia mítica onde se juntaram em partes iguais o messianismo hebraico-português, o cristianismo messiânico-encarnacionista e os velhos arcanos céltico-bretões, como também, e cumulativamente, as aspirações nacionais e populares, quer a um nível onírico, quer a um nível sócio-político. Pilar enigmático da estrutura cultural portuguesa, não o podiam abalar os sarcasmos de José Agostinho de Macedo ou de António Sérgio. O sebastianismo é um dado profundo, é um arquétipo, é uma realidade psíquica e mítica do nosso povo e da nossa cultura.
Comecemos por escutar os seus poetes, que são, não por acaso, os maiores de entre os maiores. Só depois de bem lido e reflectido na sua expressão poética principal, poderá o sebastianismo ser entendido na sua justa medida de fulgor e de sombra, de profundidade ôntica e de quimera feérica. 

O Sebastianismo anterior ao rei Sebastião
O ‘Bandarra’ (?-1545 ou 1556)
É nas trovas proféticas de Gonçalo Annes, o ‘Bandarra’, sapateiro de Trancoso, que se fundaram, em seu espírito sobrenaturalista e mitogénico, um João de Castro, um António Vieira ou um Fernando Pessoa para proclamar o regresso do Encoberto, avatar do rei tragicamente desaparecido em Alcácer Quibir.
O ‘Bandarra’, cuja data de nascimento não se conhece, teria morrido, segundo tudo o indica, no ano de 1545, isto é, nove anos antes do nascimento do príncipe Sebastião. Mas em algumas das suas trovas surge profetizada a vinda de um soberano, de um Encoberto, qual aquele que é sonhado depois de Alcácer Quibir, o regenerador messiânico de um Portugal não apenas restaurado na sua glória, mas cabeça desse império iluminado de cristandade, de verdade e de paz que seria o Quinto Império... 


Cortesia de revistasusp
  
Eis as quadras mais significativas, seguindo uma recente edição. Notem-se as referências ao futuro Rei-Imperador, ao Cão derrotado (o muçulmano diabolizado), à conquista dos Reinos Africanos e à imposição imperial de um reino de paz e de verdade.
Logo no “Sonho Primeiro”, o ‘Bandarra’ anuncia a futura vinda de um soberano  
‘com tal nobreza,
qual eu nunca vi em Rei’ 
é o  
‘Rei das passagens
do Mar’...;  
é um rei tão ‘excelente’, que os outros reis ficarão mui  
‘contentes
de o verem Imperador’;  
caber-lhe-á uma missão: tirar  
‘cedo do ninho
o porco, (o mouro), e este ‘fugirá para o deserto’, porque 
‘vai ferido
desse bom Rei Encoberto’. 
Eis as trovas: 
LXX
Portugal tem a bandeira
com cinco Quinas no meio,
e segundo vejo, e creio,
este é a cabeceira,
e porá sua cimeira,
que em Calvário lhe foi dada,
e será Rei de manada
que vem de longa carreira.

LXXI
Este Rei tem tal nobreza,
qual eu nunca vi em Rei:
este guarda bem a lei
da justiça, e da grandeza.
Senhoreia Sua Alteza
todos os portos, e viagens,
porque é Rei das passagens
do Mar, e sua riqueza.

LXXII
Este Rei tão excelente,
de quem tomei minha teima,
não é de casta Goleima,
mas de Reis primo e Parente.
Vem de mui alta semente
de todos quatro costados.
De Levante até ao Poente.
Todos Reis de primos grados.

LXXIII
Serão os Reis concorrentes,
quatro serão, e não mais;
todos quatro principais
do Levante ao Poente.
Os outros Reis mui contentes
não por dádivas, nem Presentes.

LXXIV
Comendadores, Prelados,
que as Igrejas comeis,
traçareis, e volvereis
por honra dos Três Estados.
E os mais serão taxados;
todos contribuirão
e haverá grão confusão
em toda a sorte de estados. 

(Continua)


In António Quadros, Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1983. 

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT