quarta-feira, 14 de março de 2012

Cultura. Civilização. António José Saraiva. «Segundo uma tradição chinesa, a escrita foi inventada por um ministro do primeiro imperador, que se inspirou nas pegadas das aves no solo. A comunicação oral à distância trouxe uma forma de expressão à primeira vista falada, mas que utiliza uma forma neutra ou banal inspirada pela escrita, e que por vezes se reduz à leitura de um texto previamente escrito»

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A escrita
«Pará traduzir estas expressivamente, é necessário reforçá-lo com os recursos da retórica: onomatopeias, ritmos, metáforas, comparações, etc. As estórias aos quadrinhos são uma combinação da reprodução figurativa com a escrita alfabética.
Esta observação diz respeito unicamente às línguas de origem indo-europeia. Estas são produzidas graças a uma capacidade de abstracção que leva a distinguir o som do conceito e, dentro do som, os seus diversos componentes. Mas há uma cultura ou civilização que tem um espírito completamente diferente, em que não se faz essa distinção e em que nem sequer se pode dizer que haja conceitos distintos da expressão escrita ou falada: a cultura chinesa, que domina todo o Extremo Oriente, desde o Japão à Malásia. Nessa cultura é difícil inventar um alfabeto. Cada palavra é uma acção, um pedido, uma chamada- É, como uma acção que se traduz graficamente por um emblema, como os sinais de circulação.

Segundo uma tradição chinesa, a escrita foi inventada por um ministro do primeiro imperador, que se inspirou nas pegadas das aves no solo: isto parece mostrar a incapacidade de abstrair das coisas as ideias que as representam mentalmente.
A comunicação oral à distância trouxe uma forma de expressão à primeira vista falada, mas que utiliza uma forma neutra ou banal inspirada pela escrita, e que por vezes se reduz à leitura de um texto previamente escrito. É a telecomunicação, limitada pelo horário, que é profundamente diferente da recitação oral dos tempos homéricos e da que encontramos hoje ainda no teatro, que mantém urna aproximação mais forte com a vida. O papel de um recitador de poesia é dar relevo às palavras fugindo à banalização que a telecomunicação lhes impõe.

A mais antiga forma de comunicação à distância foi a imprensa, inventada por Gutenberg cerca de 1440. A imprensa permitiu vulgarizar a palavra e criou o hábito da leitura silenciosa e solitária. As polémicas religiosas dos séculos XV e XVI aceleraram a multiplicação da escrita impressa e aumentaram a quantidade de pessoas que tinham acesso ao “Logos”, sem que por isso fosse alterada a sua qualidade, e acentuaram a petrificação da palavra, iniciada com a escrita.

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O sagrado
A escrita é uma forma de reproduzir, sinalizar e comunicar. Há outras, como os nós que marcam sinais em cordas, ou os entalhes em madeira, ou as pedras dispostas intencionalmente. Essas pedras em muitos casos assinalam túmulos. Essa celebração da morte em pedra atingiu o seu auge no Egipto antigo com as pirâmides, que chegaram até nós. Destinavam-se a perpetuar a vida dos mortos que, para durarem, eram embalsamados.
A morte é uma experiência que não se pode transmitir. Para os companheiros sobreviventes é um mistério impenetrável. Há pedras sagradas, como a Caaba de Meca, que atrai peregrinações de todo o mundo. E há também plantas sagradas e animais sagrados, pelo menos para certos agrupamentos humanos. Sagrado é o que causa medo ou terror e que, por isso, é objecto de adoração ou de culto. Um bom exemplo é a sarça ardente donde saiu a voz de Deus dizendo: 
  • “Ego sum qui sum: Eu sou o que sou” ou “Eu sou o que é”, ou ainda “Eu sou o Ser”. Da experiência terrível que Moisés recebeu desta visão e desta voz nasceu a religião judaica».

In Cultura, António José Saraiva, Difusão Cultural, 1993, ISBN 709-972-154-7.

Cortesia de Difusão Cultural/JDACT