terça-feira, 27 de março de 2012

Herculano Desconhecido. 1851-1853. António José Saraiva. «A demissão de Cabral não aquietou já o movimento. A “Patuleia” reinava outra vez na rua. Havia quem reclamasse a abdicação da Rainha, e até a abolição pura e simples da monarquia. … Ameaçava tornar-se uma insurreição popular mais formidável que a de ‘Setembro de 1836’»

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Herculano perante a Regeneração
«O Marechal, que era astuto sob a aparência de ingenuidade, parece ter dado a Herculano a impressão de que o conquistara para aquele programa e de que ia ser, por detrás dos bastidores o chefe civil do governo revolucionário. Era e maneira de atrair para o movimento um grupo numeroso de liberais sinceros a meio caminho entre o “Cartismo” e o “Setembrismo”, e até muitos adeptos deste último partido, onde, como notámos, Herculano tinha numerosos amigos. Cinco dias antes da partida do Marechal para a “sua tournée conspirativa”, estava Herculano no segredo da conjura, o que não quer dizer que muito antes não colaborasse na sua preparação.

O plano de Saldanha consistia em jogar o seu prestígio militar, e correr a aventura de sublevar pessoalmente os quarteis para, em seguida, com o apoio da força, obrigar a Rainha (aconselhada pelo Paço) a negociar. Segundo a narrativa a que nos encostamos, falhada uma tentativa em Lisboa, o Marechal saiu daqui em Abril; mas raras portas se lhe abriram. E de quartel em quartel, sentindo-se desamparado, parou, segundo uns em Castro d’Aire, segundo outros, em Lovios, na Galiza. O golpe de estado podia considerar-se abortado. Foi então que os ‘setembristas’ resolveram dar-lhe a mão. José Passos, Vitorino Damásio (o industrial), Serpa Pinto, oficial do exército, prepararam no Porto uma revolta de sargentos e soldados, e foram buscar o Marechal fugitivo, a quem entregaram a cidade.

Saldanha acastelou-se no Porto. Em Coimbra o rei consorte Fernando II, à testa do exército enviado a submeter o rebelde, não avançava, e ganhava tempo escrevendo à Rainha para a convencer a negociar. Lisboa entrava numa fase de efervescência revolucionária; sucediam-se as manifestações de rua que a Guarda Municipal sob o comando de Carlos de Mascarenhas, irmão do marquês de Fronteira, extremista da direita, dificilmente continha. Em 26 de Abril, Cabral é forçado a demitir-se e a pôr-se em fuga, substituído pelo duque da Terceira, que provavelmente colaborava na conspiração palaciana.
A demissão de Cabral não aquietou já o movimento. A “Patuleia” reinava outra vez na rua. Havia quem reclamasse a abdicação da Rainha, e até a abolição pura e simples da monarquia. Aquilo que pretendia ser um simples golpe de estado de palácio ameaçava tornar-se uma insurreição popular mais formidável que a de ‘Setembro de 1836'; e durante um momento pareceu iminente um 48 português.

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Os políticos cartistas manobravam, porém, com habilidade. Conseguida a demissão de Cabral, o seu objectivo imediato era deter o movimento popular. O instrumento para isso estava naturalmente achado: era o próprio Marechal, cuja ambição, versatilidade e ausência de ideias pessoais ninguém desconhecia. Um grupo de que fazia parte Rodrigo da Fonseca Magalhães convenceu a Rainha a entrar em negociações imediatas com Saldanha, exigindo dele como única condição que a não expulsasse do trono.
Saldanha anuiu a este pedido decerto com íntima satisfação, porque no fundo também queria evitar a revolução, embora houvesse no movimento quem o incitasse a exigir a abdicação de D. Maria em seu filho o futuro Pedro V. Ao mesmo tempo que negociava entre a Rainha e o Marechal, Rodrigo mantinha contacto com a embaixada inglesa. É provável que tivesse feito ver também aqui que um governo do Marechal era a única maneira de evitar a insurreição iminente». In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.

Cortesia de Edições SEN/JDACT