Cortesia de wikipedia
«Apesar disso, a resposta que deu ao pedido que o Negus fazia em matéria de religião foi francamente negativa. Reprovando os ensinamentos e as práticas religiosas dos Africanos por pouco ortodoxas, o rei não tinha a menor intenção de considerar a Igreja Etíope como parte do Catolicismo Romano.
Ao invés do rei, o jovem Góis estava mais interessado na questão religiosa do que nos aspectos políticos da mensagem de Mateus. Chega até nós, nas palavras do próprio Góis, o relato da longa conversa que teve com o emissário, o qual, muito provavelmente, lhe explicou os pontos principais da religião etíope. Embora se lhe tivessem apagado da memória os pormenores deste acontecimento, Góis estava bem lembrado do teor geral do diálogo travado com Mateus. Nas viagens posteriores que fez ao serviço do rei português Góis transmitiu a pessoas conhecidas informações sobre a Igreja da Etiópia e manifestou o seu espanto ante a expansão do Cristianismo até um posto tão remoto, pouco lhe interessando as diferenças de dogma entre a Igreja africana e a católica. Pela vida fora manteve-se favorável à religião etíope, defendendo-a vigorosamente quando já amadurecido, apesar dos perigos que daí adviriam à sua reputação religiosa.
Esses contactos com outros países, resultantes das expedições além-mar dos portugueses, influenciaram grandemente o espírito de Góis no sentido duma visão larga do mundo. Também ajudaram a criar nele uma salutar consciência nacional e uma disponibilidade para aceitar ideias novas em diversos campos do empreendimento humano. Excepto no desenvolvimento do patriotismo, essas qualidades representam tendências do seu pensamento que em muito se assemelhavam ao humanismo erasmista.
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Enquanto se formava o carácter intelectual de Góis também se desenvolviam os seus interesses culturais. O rei Manuel I devia ter sido um professor sagaz que pelo exemplo e pelo entusiasmo foi capaz de despertar as capacidades latentes do discípulo. As inclinações de Góis harmonizavam-se com as predilecções pessoais do rei, e a personalidade do jovem desabrochava plenamente na atmosfera do palácio real que tão conforme era à sua própria índole. O tom da corte, alegre e despido de formalidades, tornou-se parte da atitude e do modo de vida de Góis.
Como um príncipe típico da Renascença, Manuel I patrocinava múltiplas actividades culturais e espirituais. Assim, por exemplo, manifestava piedade religiosa deplorando abertamente os abusos verificados durante o pontificado de Alexandre VI. As comédias e farsas do maior dramaturgo português da época, Gil Vicente, famoso pela crítica social que incluía a censura severa da Igreja e das ordens religiosas, eram apresentadas regularmente na corte. É possível que Góis tivesse ganho o gosto pela discussão franca de pontos controversos de religião através de Gil Vicente, muito antes de se ter familiarizado com o “Elogio da Loucura” de Erasmo, mas os seus escritos não mencionam o nome do dramaturgo.
É provável que as peças ou ‘autos’ de Gil Vicente tenham sido especialmente aliciantes para Góis pelos trechos musicais que continham. Embora Damião fosse sensível a todas as artes, era pela música que se exprimia o seu talento criador.
A boa sorte de Góis quis que o rei fosse amigo da música, mantivesse uma capela excelente, e não só apreciasse a música nas horas de lazer mas também pedisse com frequência aos seus músicos que tocassem enquanto trabalhava. Góis familiarizou-se com vários instrumentos e tocava alguns. Ouviam-se os tons suaves da espineta, da harpa ou do violino nas reuniões sociais de maior intimidade, enquanto que a flauta ou o tamborim eram fontes de distracção ou de música de dança. Usavam-se o tambor e o trombone nos desfiles militares, e a trombeta nas funções de cerimonial.
Góis distinguiu-se como executante do clavicórdio, do címbalo e da cítara, e é possível que nessa época tenha tentado compor na tradição dos famosos músicos flamengos Ockeghem e Josquin. Embora não haja a certeza quanto às datas das suas composições, na juventude manifestou preferência pela polifonia». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.
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