segunda-feira, 26 de março de 2012

Para a História da Cultura em Portugal. António José Saraiva. O Português e o Universalismo. «Significa, em primeiro lugar, que há um génio universalista? E, em segundo lugar, que esse ‘génio’ é possuído por certas raças, e não possuído por outras? E, em terceiro lugar, que há raças qualitativamente diferentes: umas que possuem “génio universalista”, outras que o não possuem?»


jdact e cortesia de serestudante

«O artigo de Castelo Branco Chaves no primeiro número da revista “Litoral nº 3” intitulado ‘Universalismo, Particularismo ou Cosmopolitismo’, apresenta, em meu parecer, uma parte de considerações justas e verdadeiras. Se bem o entendi, ele exprime a ideia de que importa não confundir o mundo do condicionalismo histórico, dentro do qual se desenrola a actividade económico-política e ao qual pertence o facto da expansão portuguesa no ultramar, com um outro mundo e um outro plano: o da universalidade do espírito. Só o espírito é universalista:  
  • ‘o que vive na lei constante do espírito humano é universal’.

Um facto histórico pode ter por limites o mundo inteiro; diz-se então que ele é de natureza ‘mundial’, «a guerra mundial», «a expansão portuguesa no mundo», etc.. Mas, pela simples razão de que é um facto, e não uma lei, nunca pode dizer-se que um facto histórico é ‘universal’. A lei é universal, o facto é mais ou menos extenso. O facto da expansão portuguesa no mundo tem uma ampla extensão.
E daí? Como transitar deste mundo do contingente histórico para o mundo espiritual das leis? Poderia alguém aceitar o raciocínio simplista de que as moscas possuem espírito universal porque se espalharam no mundo inteiro?
Mas, por outro lado, porque se diz que os Gregos tiveram ‘génio universalista’? Suponho eu que a razão desta afirmação está no facto de os Gregos terem chegado muito longe no conhecimento de certas leis constantes, comuns a toda a realidade. Os Gregos mergulharam no conhecimento do universal, isto é, da lei permanente, da fórmula mais válida para todos os sistemas de relações, da explicação mais simples a que obedece a aparente arbitrariedade dos factos. Ora, tendo os Gregos encontrado a universalidade da lei para além da contingência dos factos, eles entendem-se ainda connosco, e nós entendemo-nos com eles, à distância de séculos. Nós falamos quase a linguagem deles, quer dizer, falamos, nós e eles, mediante os mesmos nexos, as mesmas associações de ideias. Isto sucede exactamente porque esses nexos foram muito para além das aparências contingentes, são, digamos, em alto grau “lógicos”: e “logos” significa razão, espírito. Dizer que os Gregos falam logicamente é dizer que eles exprimem na sua linguagem a ordem do espírito, a inteligibilidade dos factos.

Quando, portanto, alguém afirma que os Gregos possuíram ‘génio universalista’, significa com isso que eles chegaram a exprimir a ordem do ‘logos’, independentemente dos acidentes variados da sua existência política. O ‘logos’ é o universal. Porquê? Porque fora dele há só a contingência histórica, o facto avulso, único, irreproduzível e ininteligível: o raio que destruiu o carvalho ou a expansão mundial das moscas. O ‘logos’, ou ordem do espírito, é a lei e fórmula dos factos.
Mas acertemos a nossa linguagem. Sejamos ‘lógicos’ até onde for possível. Aquilo a que chamamos «Gregos», o facto histórico «Gregos, pertence ao mundo das contingências avulsas».

Cortesia de letraecultura

Também os Gregos tiveram a sua expansão territorial, o seu condicionalismo económico-político e uma longa história que vem até hoje. O ‘logos’ não pertence a esse mundo, não é específica e contingentemente grego. Admitir o contrário seria negar tudo o que acima tem sido dito. Noutros termos: negar o próprio ‘logos’. O que nós afirmamos, quando nos referimos à universalidade dos Gregos, é que o conhecimento do universal encontrou um meio especialmente propício entre os Gregos de certa época.
O ‘logos’ ardeu mais na Grécia que em Portugal, por exemplo.
Suponho que Castelo Branco Chaves não quis afirmar outra coisa. Dizer que o ‘logos’ é grego ou que o ‘logos’ é português, ou que o ‘logos’ é grego e não português, seria dizer: o ‘logos’ não existe; só há o mundo contingente e o facto particular.
Parece-me, no entanto, que o artigo do Castelo Branco Chaves caiu nesta mesma contradição; ou que, pelo menos, a sugere. Que significa, por exemplo, a expressão:  
  • ‘o Português não possui génio universalista’.

Significa, em primeiro lugar, que há um génio universalista? E, em segundo lugar, que esse ‘génio’ é possuído por certas raças, e não possuído por outras? E, em terceiro lugar, que há raças qualitativamente diferentes: umas que possuem “génio universalista”, outras que o não possuem?
Comecemos pela primeira afirmação; “génio universalista”.
Que significa ‘génio’? Etimologicamente, esta palavra tem, como se sabe, o sentido de ‘poder criador’. Génio, relacionado no latim com ‘gerare’, é aquele que, como um ‘deus’, possui o dom de criar.

Ainda hoje se diz ou se lê «o génio do mal», entenda-se o ‘deus do mal’ ou, simplesmente, o ‘agente do mal’; «os génios da floresta» (os pequenos ‘deuses’ da floresta). O Ariel, de Shakespeare, era um génio, invisível, que dava conselhos ao ouvido e inspirava resoluções. Parece-me evidente que o Castelo Branco Chaves não quis exprimir por esta palavra «génio» o mesmo que Shakespeare pelo seu Ariel; empregou-a, possivelmente, à falta de outra. Isso não impede que o seu emprego seja significativo: denuncia a concepção, não muito precisa, de um ser criador e activo, manancial de universalismo, existente no seio das raças.
E esta concepção assim expressa por um termo de significado mitológico é, evidentemente, a negação de qualquer atitude lógica, do próprio ‘logos’. Se eu disser que ‘logos’ é a lei, e a lei exprime a relação (a ‘ratio’), que formular leis é relacionar termos e negar as substâncias criadoras e activas, os “deuses”, os “génios”, não dou, evidentemente, novidade nenhuma, nem sequer levanto a discussão. Todavia, a esta concepção opõe-se a concepção qualitativa, substancialista, mitológica, particularista, que a expressão «génio universal» ainda exprime». In António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, o Português e o Universalismo, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-459-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT