quarta-feira, 14 de março de 2012

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «Nesse dia, as casas mais ricas tinham posto as melhores colchas à janela: tecidos preciosos, de cores quase pecaminosas, que habitualmente serviam para cobrir as camas e os corpos que se entregavam, à noite, a exercícios que nada tinham a ver com o culto do divino, eram assim purificados desse uso nocturno»

Cortesia de lepetitvert

«O que se passava ou se dizia nesses encontros ninguém soube; e por isso a Loja adquiriu uma reputação suspeita, como se uma sociedade secreta ali tivesse a sua sede. No entanto, os homens podiam limitar-se e contar os segredos da aldeia, a discutir as doenças do gado, ou a combinar estratégias para a feira que vinha no princípio do Outono, e era o acontecimento mais importante do ano, mesmo mais importante do que a festa da igreja, a que só iam os camponeses que vinham do interior, trazendo as suas oferendas de bolos feitos com massa doce, em forma de animais ou de partes do corpo, para pagar promessas.
A religião era, assim, apenas um negócio, que se tinha de respeitar, como se Deus não passasse de um agiota que emprestava a saúde a prazo, até esse dia em que cada um tinha de ir pagar a sua prestação, sob pena de se ver condenado à desonra eterna.
Vinham de muito longe: atravessavam as serras, os lugares do interior habitados por gente de pé descalço e pronúncia bárbara; bebiam água das fontes, que nesse tempo ainda podia ser bebida por gente habituada, descansavam uns minutos à hora em que o calor apertava, mas por pouco tempo, porque o que importava era chegar o mais depressa possível ao adro, e aí depositar o seu penhor. Dir-se-ia que eram pessoas silenciosas, ou que a vista da aldeia, com a organização social presente em gente de fato e gravata, em soldados, em automóveis com altifalantes que vendiam produtos finos, da cidade, os intimidava a essa atitude de basbaques, mas só em aparência, porque o que eles faziam era recolher as impressões desse outro mundo, quase fantástico, para as levarem de volta às suas casas miseráveis, da serra ou dos vales longínquos, para terem assunto nas noites gélidas do Inverno.

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Alguns, atrasavam-se, ou porque vinham de mais longe, ou porque tinham feito mal os cálculos, ou porque a idade e as doenças lhes tinham emperrado as pernas. Chegavam depois dos leilões, quando já não havia possibilidade de pagar as promessas. Vinham com os bolos nos sacos, e davam a volta ao adro, como se estivessem envergonhados, e não soubessem bem o que fazer; mas depois arrependiam-se, punham os bolos em cima das mesas de madeira que estavam enfeitados para. a festa, e esperavam pelas ofertas, porque também havia os retardatários que tinham perdido o leilão, ou os que sempre aproveitavam para levar mais alguma coisa. No entanto, era gente que se ia embora com tristeza, como se tivesse falhado uma oportunidade que não sabiam se se iria repetir no ano seguinte, porque tudo aquilo tinha o ar efémero e provisório de um sonho para quem vivia fora da civilização, e que, ao regressar a casa, nunca sabia o que poderia acontecer a esse mundo de regras desconhecidas e limites absurdos.
O velho Professor tinha um lugar destacado nesses dias. Era ele quem segurava a frente do pálio sob o qual o padre levava o cálice, durante a procissão. Não que desse sinais de acreditar na religião; mas era um hábito e o padre não via razões para que a falta de crença de um homem fosse um argumento de peso para alterar a ordem deste mundo, e menos ainda a ordem divina. Os andores, esses, eram entregues a trabalhadores do campo, habituados aos grandes pesos, como os animais de carga que transportavam os sacos ou que puxavam a água.

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De resto, não se dava pelo esforço nos seus rostos: estavam impassíveis, como as figuras que transportavam, os santos feitos por imaginários de séculos passados, e que se equilibravam sobre andores de madeira boa, pesada, pintada de ouro mas a que o tempo ia dando uma tonalidade baça, como se Deus quisesse dizer que também a eternidade se cansa. Atrás do pálio iam os homens fardados; e essa sucessão dava a hierarquia do mundo em que o padre, o professor e os soldados sustentavam o equilíbrio das classes, enquanto o sacristão, correndo ao lado e à frente, ia deitando o fumo do incenso, que deixava o seu cheiro nas ruas cuja sujidade era disfarçada pelos ramos de palma que enfeitavam todo o caminho, feito sob o repicar pungente dos sinos, excepto nas alturas em que a procissão parava, e se faziam algumas rezas, em frente das capelas da aldeia, de porta aberta nesses dias, os únicos em que era possível ver o seu interior que, nesse tempo, ainda era rico, com retábulos e talha, que depois as famílias a que pertenciam levaram para as suas casas da cidade, ou puseram à venda nos antiquários da capital.
A ordem visível no protocolo da procissão sustentava-se do latim do padre, que impunha o discurso nascido no fundo dos tempos, embora o nascimento do Cristo tivesse dado um princípio a esse passado de contornos obscuros para aquela gente. Nesse dia, as casas mais ricas tinham posto as melhores colchas à janela: tecidos preciosos, de cores quase pecaminosas, que habitualmente serviam para cobrir as camas e os corpos que se entregavam, à noite, a exercícios que nada tinham a ver com o culto do divino, eram assim purificados desse uso nocturno.
Muitas dessas colchas estavam rotas, o que era um sinal de antiguidade; e outras tinham sido remendadas à mão, deixando ver as suas costuras ao sol, como cicatrizes de lutas secretas que mostravam com orgulho a uma população que, no entanto, olhava para as janelas com um ar tímido, de esguelha, evitando o olhar directo que poderia parecer de afronta, e provocaria a suspeita dos homens de gabardina e óculos escuros, que se misturavam por entre a gente, e que nos dias em que havia povo junto tinham um ouvido mais apurado do que de costume, porque as festas convidam à confidência». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT