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«Contou-nos então Rafael, como, depois da partida de Vespúcio, ele e os companheiros, que tinham ficado em Gulike, começaram pouco a pouco, com afabilidade e bom trato, a ganhar a amizade e o favor dos naturais da região, acabando por viver entre eles, em paz e em boas relações de comércio. Contou-nos também como tinham conseguido o afecto e confiança de um homem ilustre e poderoso (cujo nome e país não recordo já) que, generosamente, lhes custeou, a si e aos cinco companheiros, tudo o que precisavam para seguir viagem. Dando-lhes ainda um guia para os acompanhar, por terra e por mar, e os apresentar a outros príncipes, com as melhores recomendações.
Depois de caminharem durante vários dias, encontraram cidades e povoações, repúblicas bem governadas, vastas e populosas. E Rafael prosseguiu a sua narração: no equador, abrangido em ambos os lados pelo movimento do Sol, viram vastos desertos e solidões, queimados e ressequidos por calor incessante e intolerável. Tudo ali era desagradável, horrível e difícil de suportar; tudo era desmesura e desordem. A terra era habitada por animais ferozes e serpentes, ou quando muito por homens mais selvagens e cruéis que os bichos. À medida que se afastavam do equador, a natureza recuperava pouco a pouco a beleza e tornava-se mais agradável, o ar temperava-se e o calor atenuava-se; a terra cobria-se de vegetação cada vez mais verde e os animais perdiam a ferocidade. Chegaram, por fim, às cidades e gentes cuja ocupação predominante é o comércio, por terra e por mar, não só no interior como entre os povos vizinhos e mesmo com nações longínquas.
Aí, continuou Rafael, tive oportunidade de viajar para muitos países, pois em todos os navios éramos bem recebidos, qualquer que fosse o seu destino. As primeiras embarcações que encontrámos eram rudes, chatas e largas. As velas eram formadas por vimes ou juncos entrançados, e algumas por pedaços de couro. Encontrámos em seguida barcos pontiagudos e com velas de cânhamo e finalmente embarcações em tudo semelhantes às nossas. Os marinheiros eram hábeis e bons conhecedores do mar e do tempo. O seu desconhecimento da bússola levou Rafael a cair nas suas boas graças, ao ensinar-lhes o uso deste instrumento. Se, até aí, só se aventuravam no mar em tempo de calmaria, e cheios de receio e temor, passaram a ter tal confiança neste instrumento que já nem as tempestades receiam e navegam, por vezes, mais confiantes que seguros. É pois de recear que, por causa da sua louca ousadia, esta invenção, a princípio benéfica e cómoda, lhes venha a ser causa de tragédias e desgraças.
Levaria muito tempo a contar tudo o que Rafael viu dos muitos países que visitou e não é esse o propósito desta obra. Tratarei disso noutro livro, particularmente dos pormenores cujo conhecimento nos poderá ser útil, em especial os decretos e leis cuja justiça e inteligência Rafael teve ocasião de observar, leis que governam em boa ordem e civismo os povos que a elas obedecem.
Perguntámos-lhe inúmeras coisas acerca destas questões, e de bom grado ele a todas respondeu. Não o interrogámos, porém, sobre monstros famosos, como os Cilas ladradores, os rapaces Celenes e os antropófagos Lestrigões, pois esses não são já raridade e perderam todo o interesse. O mais raro e digno de admiração é agora uma república justa e sabiamente governada.
Rafael contou-nos que encontrou nesses povos leis tão loucas e injustas como as nossas, mas que também neles observou grande número de decretos e constituições cujo exemplo salvaria dos seus erros as nossas cidades, povos e reinos». In Thomas More, Utopia, Europa-América, ISBN 972-1-02918-1.
Cortesia de Europa-América/JDACT