quinta-feira, 8 de março de 2012

Tempo de Escrita. As Passarinhas. Ibn Maruán. J. Caldeira Martins. «Mas não me desmanchei. E, sem esfriar a perplexidade da xevareira, teimei em saber quem era o andarilho que persistia naquele corrupio a caminho dos montes. Deitei-lhe milho com um neutro ‘ai ele esteve cá outra vez?’ e fiz logo ali a apanhadia: - É a ‘Medalha’! O raio do animarejo lá aquecer aquece, mas revolta-se sempre…»

jvermoin

«Boas palavras, as dos mestres da velha escola veterinária.
Sentenciavam eles que, no lidar diário com o homem do campo, havíamos de nos socorrer de um vocábulo chão e correntio. Nada de palavras arrebicadas de cidade, sonoras mas impenetráveis em gente que pouco castigou os bancos da escola, gente que um deles, num calhamaço com que nos arruinou a memória mas que também foi fonte inesgotável para a nossa irreverência pré-abrilina, tratou saborosamente por … lapuzes.
Agora, depois deste tempo todo a lavutar com os lapuzes, reconheço que a intenção, não sendo má sofre de exagerada moderação. Umas vezes porque os camponeses, defendendo-se das palavras estranhas que aos poucos lhes vão poluindo o falar, pegam nelas, ajeitam-nas, mastigam-nas a outras de sua convivência e deixam-nos nos braços, domesticadas mas irreconhecíveis. Outras vezes, porque desconfiando da simplicidade do nosso discurso, se põem a fantasiar obscuras interpretações.
Tomemos, como ilustrativos da primeira situação, os seguintes exemplos:
Um dia, cheguei sem mandar recado, a um casal perdido lá pelas alturas da serra de S. Mamede. Não mais do que umas vacas manhosas e uma Dona arregougada e milagrenta. Esta, assim que me viu veio de braços espantados em forquilha, numa grande admiração:
- Ele há cada adrêgo! Tivérindes chegado um migalho mais cedo e empeçávides no homem da Menina São. Ele, com esta, já são três vezes as que cá vem.
Só para não desgostar a criatura, que tão sincera se mostrara no seu entusiasmo, é que eu reprimi um alarve ‘empeçavamos em quem?!’ Há uma, porque o homem da Menina São não é o que se diga das minhas relações; há outra, porque não sabia sequer que a Menina São tinha homem; e por último, porque não conheço nenhuma Menina São.

Cortesia de proviver

Mas não me desmanchei. E, sem esfriar a perplexidade da xevareira, teimei em saber quem era o andarilho que persistia naquele corrupio a caminho dos montes. Deitei-lhe milho com um neutro ‘ai ele esteve cá outra vez?’ e fiz logo ali a apanhadia:
- É a ‘Medalha’! O raio do animarejo lá aquecer aquece, mas revolta-se sempre…
Ora aí estava! O esgravunha era o técnico de inseminação artificial, incapaz de convencer a vaca ‘Medalha’ a trocar os prazeres do método natural pela fria prática da introdução da palhinha.
[…]
Ainda relacionado com vacinações, lembro-me de um outro episódio, na parte norte do concelho de Marvão. Passou-se no princípio da outra década, quando a febre aftosa nos deu o último susto.
Uma mulher, e isto só podia mesmo acontecer com uma mulher, alvoraçada alvoraçada com o alastramento do morbo, perguntou-me para que lhe protegesse os animais contra a … febre afectuosa. Nunca a safrenha soube, mas deixou-me uma boa meia hora trauteando o ‘ com açúcar com afecto’ do Chico Buarque, que a escrever no ar a etiologia, os sintomas, as lesões, o tratamento e a profilaxia desta moléstia que, existisse ela, e não seria de brutos não, mas antes de deuses e arcanjos. Também dos campos do sobrenatural me pareceu o caso do cidadão que, farto de amezinhar contra os Cristos que lhe atazanavam as cabras, me veio pedir conselho. Afinal, tudo não passava de um têtêlos purulentos de uns vulgares quistos. Mas não lhe emendei a terminologia, que o assunto é melindroso e sabe-se como, nos dias de hoje, uma laracha sobre tal tema nos pode pôr a comer saramagos.
[…]

Cortesia de valedacarreira

Logo que visitei o novo sachineiro me apercebi do absoluto estado de inocência do rapaz em relação aos trabalhos em que se foi meter. Ainda é como que estou a ver: de três chambaris escorriam outros tantos porcos, vitimados por uma faca que lhes andou pelo galhote à torna balkdia até esbarrar no osso do peito.
Mais nos chispes, mas um pouco por todo o corpo, irrompiam vigorosos tufos de cerdas, virgens ao lume e à mangarreira. Estava visto que, vida que o teu pai não usou qual foi o diabo que te tentou. Não fui áspero no correctivo, que o sujeito era caloiro na arte. Antes lhe sugeri algumas alterações, enquanto procedia aos rotineiros cortes de inspecção nas reses suspensas. Depois quis examinar as vísceras mas não as encontrei: - Olhe, traga-me lá as miudezas…
Vistoriei por entre a massa das tripas e lá estavam os buchos, as cacholas, os entretinhos, mas dos baços nem vivalma. Bem revoltinhei tudo ali junto à grande curvatura dos estômagos, onde pertence encontra-los, mas… nada.
- Oh amigo, onde é que estão as passarinhas?
O grande velhaco, mancou-me da poupa da marrafa às gáspeas dos butes e com um doar cúmplice resolveu:
- Oh senhor Doutor, não têm passarinha. São todos três porcos machos.
É no que dá uma mocidade que, do cantar em coro, teve pelo menos a prática arrastada do ‘minha mãe casai-me cedo…’». In J. Caldeira Martins, Ibn Maruán, Revista Cultural do Concelho de Marvão, Coordenação de Jorge Oliveira, nº 2, 1992. 

Com a amizade do J. C. Martins, Alpalhão
Cortesia da C. M. de Marvão/JDACT